O Duplo na Literatura

No tema do duplo Freud faz reparo, consagra atenção para dois fenômenos: o do Mesmo e o do Duplo. O Mesmo respeitante a uma impossibilidade instantânea de reconhecer a si mesmo, para ato contínuo o Eu arrepanhar apoderar-se daquela imagem que é sua. Tal como aconteceu com o próprio Freud, quando de súbito, dentro da cabine espelhada de um trem, não reconheceu a própria imagem refletida, provocando reparos do “mal-entendido” ou do “mal-reconhecido”. Mas consoante ao duplo sua constituição e funcionamento mostram-se meadas de difícil enredo: são mais complexas. Ele duplo é um outro de si mesmo – incógnito como tal e reconhecido pela sensação de estranhamento que ele é capaz de causar.

Diremos ainda de forma mais esmiuçadora que o sentimento de sinistro parece sobremaneira forte, em todas as condições sobre as quais o mecanismo de duplicação imaginária parece prevalente – tema literário do duplo.

A literatura explora tempo todo a forma do duplo. A comédia dos erros existe desde toda a eternidade. Gêmeos já usurpavam identidades nos palcos da Grécia antiga. Aristófanes, Plauto, Shakespeare, Tirso de Molina, Lope de Veja, Corneille, Calderón, Molière e tantos outros criadores lançaram mão desta apropriação voluntária-involuntária de heterogeneidade. Todos sabiam que o destino – conforme afirma o adágio estóico – guia aquele que consente e arrasta aquele que recusa. Essa motivação do enredo condicionada pela semelhança já existia inclusive nas lendas heróicas. Os apoderamentos do análogo remontam aos ciclos das mitologias indianas e das lendas tebaicas: – Mercúrio – por exemplo – assume as formas do escravo Sósia. Molière retoma esse tema em 1668 criando a peça Amphitryon ­- transformando esse mito heróico numa cômica desventura conjugal. Um conflito psíquico cria o duplo – projeção da desordem íntima. São espelhos sombras fantasmas aparições retratos. No espelho somos duplicados, e poucos de nós têm a chance de descobrir – feito ela Alice – o que está do outro lado.

Em seu texto datado de 1919, Das Unheimliche, Freud afirma que o duplo – apesar de nos parecer algo de estrangeiro, estranho a nós-mesmos – sempre nos acompanhou desde tempos primordiais do funcionamento psíquico, estando sempre pronto a ressurgir e provocando-nos uma sensação de inquietante estranheza (uncanniness).

A peça mais expressiva de todos os tempos talvez seja shakespeariana: a Comedy of Errors. Aqui Shakespeare duplica o número de irmãos idênticos, acrescendo ao par de gêmeos patrões, um par de gêmeos criados – multiplicando sobremaneira o imbróglio equivocativo por assim dizer. O duplo – disse Clémant Rosset – representa a dualidade em seu aspecto mais perplexo e sinistro.

O sinistro freudiano instaura, lança os alicerces de um outro olhar sobre os pilares da subjetividade atinentes ao seu, por assim dizer, temperamento desconhecido – natureza que aloja em si um paradoxo subjetivo que o próprio sujeito às escuras ignora, mas que reside em sua intimidade, estranha idiossincrática intimidade.

Importante destacar que o sinistro é tracejado unido pelas articulações entre o desejar desconhecer ao conhecido que lhe é próprio ou, redescender submergir no trajeto de fazer-se senhor do saber, da verdade, do gozo e da morte e não mais conhecer. Tal foi o fim de Édipo e de tantos outros mitos da literatura universal.

Oscar Wilde criou o duplo de Dorian Gray e seu retrato – um recurso aparentemente vazio desprovido de sentido no mundo da literatura fantástica – mas que na realidade mostra-se bem mais complexo. Esta obra possui um criador e sua criação monstruosa, sujeitando-os a uma nova fragmentação. O pintor Basil Hallward cria o que no fim de tudo resultará numa aterradora obra de arte – digna das regiões do Tártaro -, na qual revela muito de sua própria vida, e, que por isso, deve permanecer em segredo. Mas a vida por ele pintada torna-se independente dele; o retrato afigura-se como original e duplo do próprio Dorian. Ele simplesmente pensa num desejo impossível: ficar sempre jovem enquanto o seu retrato envelhece. Dorian é um narcisista por assim dizer introvertido – e não conseguindo realizar suas pulsões, desloca-as para o objeto na tentativa de obter a satisfação narcísica. O criador diante da criatura: “Você se tornou para mim a encarnação visível daquele ideal invisível cuja memória nos obceca a nós artistas como um sonho perfeito”.

Esta obra de Oscar Wilde – é bom que se diga – transformou-se na época (1891) numa espécie de evangelho do decadentismo e do esteticismo. A morte de Dorian é simultânea com o golpe que ele desfere contra o retrato. Criados entram na sala olhando o magnífico retrato na parede do amo. Ele o retrato estava ali como eles os tinham conhecido: na esplendência de sua mocidade e beleza. Mas no chão jazia o cadáver de um homem em traje-rigor – com uma faca cravada no peito: lívido enrugado repugnante. Mas pelos anéis conseguiram identificá-lo. Era claro o próprio Dorian Gray – um outro de si mesmo, desconhecido como tal e reconhecido pela sensação de estranhamento que é capaz de causar.

O duplo é um Outro, que olha o sujeito sem lhe dizer nada, apenas faz com que ele se interrogue fazendo-se a seguinte questão: “que queres tu de mim?” – ou “Che voi”?

Só a morte faz o Eu coincidir consigo mesmo e afirmar de novo a sua unicidade enquanto algo irredutível. Otto Rank, – na sua obra intitulada Don Juan et le Doublé – atribui ao duplo esse poder específico: o de concorrer para o impedimento da morte de si-mesmo. Segundo este mesmo autor, a crença ancestral na morte está diretamente ligada à temática do duplo e ao desdobramento da personalidade – pois ele duplo age como mecanismo privilegiado cuja função é a de inibir a morte do sujeito por ele representado.

Dentro dessa linha do sobrenatural vamos descobrir, por exemplo, que Casanova – ao envelhecer – transporta-se para a identidade de um duplo mais jovem, para gozar de uma última noite de amor. Aqui especificamente nos deparamos com um ambiente ou contexto em que o sujeito e seu DUPLO coexistem em perfeita simbiose. Essa idéia surgiu do médico e escritor vienense Arthur Schnitzler – morto em 1931.

Já a usurpação voluntária foi explorada ad nauseam no teatro espanhol do Renascimento: semelhanças de reis ou dignitários com camponeses, utilizadas para fins políticos. No sentido oposto oportuno citar o Mahabharata (século IV-V a.C.), livro sagrado da Índia, que páginas tantas mostram quatro deuses tomando a aparência da heroína ajudando o herói a encontrar a heroína verdadeira. O duplo sobrenatural existe a mancheias nas páginas literárias: modo geral trata da metamorfose momentânea de um deus num mortal de quem ele usurpa os traços e a identidade. Mas o contrário também acontece: o sonho de eternidade por meio da reencarnação num duplo jovem serve de tema para The Story of the Late Mr. Elvesham (1897), de H. G. Wells. É o homem mais uma vez – através do mito do duplo – tentando abarcar privilégios divinos. Na mitologia grega um exemplo de significação ampla: Galatéia – esculpida por Pigmalião, que, apaixonado pela sua própria obra – impressiona sobremaneira a deusa Afrodite, pois esta, ao ver tão grande amor, transforma o mármore sólido em criatura de carne e osso.

A mais famosa das histórias de duplo foi escrita por Stevenson – O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, ficando em acentuado destaque como O médico e o monstro. O primeiro sabe que está duplicado e tenta, na qualidade de cientista, desembaraçar-se da parte malformada de seu ser, que não combina com seus propósitos sociais. Mas o bom Dr. Jekyll – já agora um mero espectro de si mesmo – será parasitado pelo outro: o mal, Hyde, que é mais vigoroso do que o pobre Jekyll, pálida imagem da honorabilidade. Sua morte faz conhecer sobrenaturalmente o que ele era de fato: o corpo, encolhido, tem os traços hediondos do outro. Para Clémant Rosset “não se escapa ao destino” significa simplesmente que não se escapa ao real. O que é e não pode não ser. […] O que existe é sempre unívoco: na borda do real – seja o acontecimento favorável ou desfavorável – os duplos se dissipam por encantamento ou maldição.

A noção de duplo designa uma representação do Eu que pode tomar diversas formas encontradas no animismo primitivo como extensão narcísica e garantia de imortalidade. Otto Rank – com seu ensaio sobre o duplo (1914) – foi o primeiro a desenvolver essa noção no campo psicanalítico. Freud, aliás, cita-o ad nauseam em O Estranho (Lo Ominoso) . “Helos aqui: la presencia de “dobles” em todas sus gradaciones y plasmaciones, vale decir, la aparición de personas que por su idéntico aspecto deben considerarse idénticas; el acrescentamiento de esta circunstancia por el salto de processos anímicos de una de estas personas a la otra. De suerte que una es coposeedora del saber, el sentir y el vivenciar de la otra” – diz Freud a propósito do conto O Homem da Areia, de Hoffmann.

O motivo do duplo é retomado por ele Freud e integrado na noção de “inquietante estranheza”, essa “variedade particular do pavoroso que remonta para além que é desde há muito tempo conhecido, desde há muito tempo familiar”, mas que se tornou pavoroso porque corresponde a algo recalcado que retornou. O duplo – escreve Freud citando Heinrich Heine – converteu-se numa imagem de assombro da mesma maneira que os deuses viam demônios depois que sua religião desmoronou (1910). Não é mais o próprio duplo (sombra) que continua a viver, mas é o espírito de um ancestral que renasce no embrião – disse Otto Rank já em 1914.

Um conflito psíquico cria o duplo, projeção da desordem íntima; o preço a pagar pela libertação é o medo do encontro. Mas ele duplo está ligado também ao problema da morte e ao desejo de sobreviver-lhe – sendo o amor por si mesmo e a angústia da morte – indissociáveis. Para Keppler (1972), o duplo é ao mesmo tempo idêntico ao original, e diferente – até mesmo o oposto – dele. É sempre figura fascinante para aquele que ele duplica, em virtude do paradoxo que representa (ele é ao mesmo tempo interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e complementar), e provoca – no original – reações emocionais extremas (atração/repulsa).

Para encerrar este artigo recordaremos que Freud e Lacan acreditam que o sujeito nada quer saber sobre a falta no Outro, porque remete à própria falta, e, por conseguinte, à dolorosa experiência da castração. Esse duplo ou o sinistro estão no lugar deste Outro que reflete o que nosso (des)conhecimento não se cansa de negar. Outro como sendo o objeto a. Que já se constitui perdido – causa do desejo, do gozo, da castração. Falta ao Outro este olhar, este objeto que dele se destacou e – ao mesmo tempo – feriu, marcou o outro sujeito em sua passagem mítica, meteórica e idílica. Como diz o poeta português Mário de Sá Carneiro – no poema O Outro: “Eu não sou eu nem sou outro, sou qualquer coisa de intermédio, pilar da ponte de tédio, que vai de mim para o outro”.

De forma que a relação do homem com o primeiro duplo – Outro materno – é o que assegura a promessa de uma futura subjetividade; encontra em sua unidade narcísica as primeiras fraturas, fissuras de um sujeito que nada sabe sobre si; rosto materno espelho que se desmaterializa; que inaugura o homem fazendo-o entrar no tempo de sua existência. Perder essa unidade põe seu ser diante da tarefa de conquistar a consciência de si para que possa se perceber como sujeito dividido e ao mesmo tempo integrar-se. O ato de nascimento da humanidade corresponde a uma ruptura com o horizonte imediato. Jamais o homem conheceu em toda sua existência uma vida sem total perturbação. Não foi por acaso que Freud não conseguindo subjugar o mundo superior, resolveu revolver o Aqueronte. Somos seres destinados a sustentar a liberdade; nascemos para enfrentar a cifra de destino na coragem de ser; somos um sujeito devenir. Tal cifra de destino de ser inacabado traz na própria alma sua desgraça e sua esperança. O homem possui a necessidade de construir uma imagem na qual reconheça a si mesmo; delinear sua essência representa deparar-se com sua natureza dissolvente seu caráter paradoxal. Representa também penetrar no lugar de origem dos baixos impulsos espontâneos e alheios à razão – cheios de ambigüidade traiçoeira. Mas o fascínio reside exatamente nisso: imergir na compreensão do mistério.
>> Cronópio – por Nájla Assy

Nájla Assy é psicanalista e professora, com doutorado em Psicologia pela Sorbonne (Paris-VII) e Universidad Autonoma de Madrid. É pesquisadora do IMS (Instituto de Medicina Social) do Programa de Estudos e Pesquisas da Ação e do Sujeito PEPAS –UERJ- coordenado pelo professor Jurandir Freire Costa

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