OS BURACOS DA MÁSCARA: SETE NARRATIVAS GÓTICAS

terça-feira | 24 | janeiro | 2012

As histórias de Karen Blixen – em Sete narrativas góticas (Cosac Naify, 480 págs.) – negam as obviedades da tradição que evocam no título. Antes, sugerem novas sombras, disfarces e duplos. A começar por aquele que é o grande tema do livro, a identidade. [1]

A biografia da escritora dinamarquesa Karen Blixen tornou-se tão célebre quanto suas histórias. Casada com o barão sueco Bror von Blixen Finecke, acompanhou o marido para o Quênia, onde viveu entre 1914 e 1931. Além da fazenda de café endividada, que administrou até a bancarrota, Blixen também herdou do marido promíscuo uma doença com a qual conviveria pelo resto da vida, e que por fim a mataria: a sífilis. Após seu divórcio, em 1926, iniciou um caso amoroso com um piloto do exército britânico, Denys Finch Hatton, que morreria em um acidente de avião em 1931. Este relacionamento, como grande parte de sua experiência na África, foi narrado no romance autobiográfico A fazenda africana (Out of Africa, 1936), celebrizado pela adaptação cinematográfica protagonizada por Meryl Streep e Robert Redford. Foi durante a lenta e inevitável decadência de sua fazenda que a escritora escreveu suas Sete narrativas góticas [2] (1934). Escrito em inglês, inicialmente recusado pelas editoras, o livro foi publicado sob o pseudônimo de Isak Dinesen e se tornou um enorme sucesso de público, motivando a autora a se dedicar exclusivamente à carreira literária.

Na época em que as Sete narrativas góticas foram lançadas, houve quem criticasse a autora por causa do tom irreal de suas histórias, e a acusasse de exercer a arte pela arte, sem qualquer implicação social. Trata-se de um preconceito tolo, é verdade. Mas é indicativo do quanto os contos de Karen Blixen parecem deslocados de seu contexto original. Quase anacrônicos, mesmo.

São contos longos, quase novelas, cujos enredos se passam nos séculos 18 e 19, e tratam de certa nobreza que, mesmo decadente, ainda está muito ligada a determinadas tradições ancestrais. O início do conto “O dilúvio em Nordeney”, que abre o volume, é bastante representativo: estamos no início do século 19, em um balneário litorâneo freqüentado por “damas e cavalheiros elegantes”, e o ambiente está tomado por aquele espírito romântico

que se rejubilava diante de ruínas, espectros e lunáticos, e fazia de uma noite tempestuosa na charneca e de um profundo conflito passional regalos mais requintados para o conhecedor do que as amenidades de salão e a harmonia dos sistemas filosóficos […]. A proximidade de algum naufrágio, com os restos da embarcação ainda visíveis na maré baixa, como um escuro esqueleto petrificado e salgado, tornou-se um dos locais prediletos para piqueniques, nos quais artistas armavam seus cavaletes. (p. 9)

São facilmente reconhecíveis nas Sete narrativas góticas muitos dos temas e procedimentos da literatura fantástica, como o já citado gosto pelo passado, a exploração dos sonhos, a metamorfose, as máscaras, o espelho, as referências à bruxaria e às superstições locais. Mas não se trata de contos fantásticos, no sentido mais estrito do termo. Isso porque aquela hesitação entre a explicação racional e a sobrenatural para os eventos descritos, hesitação que é central para o fantástico, não é o mais importante destas Sete narrativas góticas. Em algumas delas, o sobrenatural é apenas insinuado; em outras, possui um importante papel, mas surge com relativa naturalidade.

Como em “A ceia em Elsinore”: por motivos que fogem à compreensão da sociedade da região portuária de Elsinore, as irmãs De Coninck nunca contraíram núpcias. Encantadoras, nunca lhes faltaram pretendentes; mas elas permaneceram fechadas ao assédio, dedicadas à casa da família e à memória do irmão, ex-corsário e desaparecido misteriosamente. Já solteironas, e vivendo sozinhas em Copenhague, as irmãs continuavam sedutoras e entretidas com eventos sociais. Certa noite, enquanto recebiam um grupo de amigos, chega-lhes de visita sua antiga empregada, senhora Baek, agora responsável pela propriedade de Elsinore. O passado, na forma de um fantasma, parece rondar a casa. Não há grandes sustos ou questionamentos sobre a natureza sobrenatural dos eventos narrados, e o conflito principal está na maneira como os personagens envolvidos lidam com seu passado.

Histórias dentro de histórias

Também é recorrente nas histórias fantásticas que os objetos ou seres sobrenaturais sejam oriundos de países distantes. Lembremos da longínqua Transilvânia, terra natal do conde Drácula; da misteriosa Índia dos contos de Rudyard Kipling, a mesma Índia de onde veio “A pata do macaco” do conto de W. W. Jacobs; ou até mesmo daquele país exótico, o Brasil, de onde surgiu a estranha raça de vampiros descritos no clássico de Maupassant, “O Horla”. É claro que, em todos os casos, está em jogo uma noção de exótico e misterioso que tem muito de esquemático, e que varia com o tempo.

Nas Sete narrativas góticas, essa região exótica e fantástica é Zanzibar. De lá vem o macaco que dá título a um dos melhores contos do livro e protagoniza um dos desfechos mais inusitados de que se tem notícia. E é nas proximidades de Zanzibar que se inicia a história de “Os sonhadores”. Aqui, porém, a autora inverte totalmente a lógica tradicional do fantástico. É o explorador inglês que conta uma história aos nativos, história passada na distante, fria e civilizada Europa. Mira Jama, o contador de histórias local, fisicamente mutilado (simbolizando a decadência de seu ofício?), terá ao final a chance de contar uma fábula. Mas que servirá apenas como mais um desdobramento ― ou versão ― da(s) história(s) do inglês.

“Os sonhadores” é um conto exemplar de um dos procedimentos mais importantes para Karen Blixen, as histórias que surgem dentro da história principal. No caso, uma única personagem é descrita por vários homens que a conheceram, de modo que ela só é acessível ao leitor através de diferentes pontos de vista, de homens vitimados pelo delírio amoroso. Desse modo, a percepção das coisas é contaminada por um estado onírico em que prevalece a ambigüidade das formas. É assim também com o jovem apaixonado de “O poeta”, cujos

pensamentos faziam com que as coisas adquirissem proporções descomunais ― como nas montanhas as imensas sombras que os viajantes projetam em meio à neblina e que os enchem de terror ―, gigantescas e de certo modo grotescas, como objetos que se movem um pouco à margem da razão humana. (p. 395)

A articulação entre diferentes histórias é particularmente complexa em “Os caminhos em torno de Pisa”, em que relações entre os personagens são mais sugeridas do que mostradas. Um jovem conde, atormentado por problemas no casamento, conhece uma velha dama cuja carruagem se acidentara. A senhora, debilitada, conta-lhe a história de sua vida, e pede-lhe um importante favor: que o conde procure por sua neta, a fim de se reconciliarem. Durante a viagem, porém, o conde presencia uma estranha discussão em uma estalagem, e é impelido a testemunhar um duelo mortal entre os contestantes. De modo que surgem histórias que se desdobram dentro daquela que julgávamos a história principal.

O verdadeiro sentido do conto (e das histórias que, mesmo sem uma ligação aparente, espelham-se uma às outras) será sugerido por dois elementos aparentemente banais: um pequeno objeto, que revela relações insuspeitas e passadas entre os personagens; e um corriqueiro teatro de marionetes que, visto de passagem pelo conde em sua viagem, parece compor a principal metáfora do conto. O grande trunfo do destino é fazer-nos crer no acaso. Como a ilusão de um teatro de marionetes.

Sem obviedades

Não à toa, outro motivo recorrente nesses contos é o do autômato. De maneira discreta, diversos personagens são comparados a bonecos ou seres inanimados. A metáfora é literariamente eficiente, não apenas porque evoca um motivo caro à literatura fantástica (pensemos no “estranho”, ou Unheimlich, que Freud identificou em “O homem de areia”, de E. T. A. Hoffmann), como reforça a idéia da marionete, do homem como um joguete do Destino. Um Destino que, onipresente, parece manipular, um pouco arbitrariamente, o andamento do enredo e sua verossimilhança.

Como decorrência dessa aparente arbitrariedade, há uma flagrante artificialidade no modo como personagens que julgávamos secundários tomam a palavra e narram suas vidas. Bem como no tom filosófico e nas citações eruditas que facilmente tomam conta de uma conversa entre estranhos. O narrador de “O velho cavalheiro”, por exemplo, tem o capricho de interromper sua narrativa para explicar devidamente a natureza das mulheres de sua época, e descrever o quanto as vestimentas das damas diziam de suas personalidades. Essas pausas são recorrentes: os personagens ― e o narrador através deles ― estão sempre dispostos a discorrer a respeito dos assuntos mais graves e, para tanto, não hesitam em recorrer a citações eruditas ou a versos memoráveis.

Mario Vargas Llosa já havia identificado como algumas das principais qualidades de Blixen certa “elegância ligeiramente passada de moda, sua esquisitice e irreverência, seus jogos e desplantes de erudição, e seu escasso, para não dizer nulo, contato com o inglês vivo e falado da rua” [3]. Neste sentido, o texto de Karen Blixen é indisfarçadamente “literário”. Mas a sofisticação de sua prosa suplanta qualquer “artificialismo”. E suas narrativas negam as obviedades da tradição gótica que evocam no título. Antes, sugerem novas sombras, disfarces e duplos. A começar por aquele que é o grande tema do livro, a identidade. Metamorfoses, disfarces e conflitos de personalidade estão presentes em todas as histórias: jovens moças disfarçadas se passam por homens, uma velha senhora sem peruca adquire as feições de um ancião, uma mulher madura e casta forja para si mesma um passado de devassidão.

Como no caso de “O dilúvio em Nordeney”: quatro pessoas que não se conhecem encontram-se, devido a situações adversas, isoladas em um celeiro cercado pelas águas. Enquanto aguardam a manhã e a subseqüente ajuda, eles contam cada um a sua história. Ninguém é quem parece ser. Caem as máscaras sociais e se revelam os vícios ― o orgulho, principalmente ― que mantêm os disfarces. “Não é pela expressão que se deve conhecer o homem, e sim pela máscara” (p. 87), diz um dos personagens. O final do conto, em aberto, é desconcertante.

Máscaras, bonecos, disfarces: o referido “artificialismo” dos contos de Karen Blixen tem algo de teatral. E o leitor, como o personagem da obra-prima “O macaco”, não deve ser “tão dogmático a ponto de acreditar que é indispensável haver tablado e luzes de ribalta para se estar no teatro” (p. 156). Karen Blixen é uma escritora para aqueles que aceitam as convenções literárias e o quanto há de onírico em todas as histórias. E aceitam a idéia de participar de um baile de máscaras em que nunca se revelarão, senão por sutilizas e discretos buracos na máscara, as identidades de seus convivas.

[1] O título dessa resenha é uma referência ao conto de Jean Lorrain, chamado precisamente de “Os buracos da máscara” e que pode ser lido em Contos fantásticos do século XIX, escolhidos por Ítalo Calvino. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

[2] BLIXEN, Karen. Sete narrativas góticas. Trad. Cláudio Marcondes. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

[3] LLOSA, Mário Vargas. “Os contos da baronesa”. In: A verdade das mentiras. Trad. Cordélia Magalhães. São Paulo: Arx, 2004.

>> DIPLÔ – por Gregório Dantas


NOVA ORDEM NO MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO

segunda-feira | 23 | janeiro | 2012

Nova agência, acordos internacionais e chegada da livraria Amazon aquecem o ‘negócio’

O boom dos livros no Brasil e no mundo - Claudio Duarte / Editoria de Arte

Em 2012, a nova realidade do mercado editorial brasileiro vai permitir que um autor seja representado por um agente baseado em Nova York, tenha seu original aprovado por um executivo morando em Portugal, assine um contrato com uma empresa da Espanha e seja imediatamente traduzido para uma editora na Inglaterra. Com a iminente chegada de um gigante da venda de livros virtuais, a nova realidade do mercado pode permitir, ainda, que a obra daquele autor seja lida com facilidade em qualquer canto do país, com um simples toque num botão de um tal Kindle.

Como tem sido repetido por aí em outras áreas, o Brasil também se tornou a “bola da vez” nos livros. A última etapa desse movimento foi o anúncio, na última semana, de que a jornalista Luciana Villas-Boas deixará o poderoso cargo de diretora editorial do Grupo Record, um dos maiores do país, para se dedicar a uma nova agência literária, chamada Villas-Boas & Moss. Hoje, o mercado brasileiro conta apenas com uma agência de relevância para livros estrangeiros e nacionais, a Agência Riff, cujos autores incluem Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo, Lya Luft e Zuenir Ventura.

— Não fazia sentido o Brasil ainda estar desprovido de mais agências — afirma Lucia Riff, fundadora da Agência Riff. — O fato é que as editoras brasileiras estão mais sólidas, com expectativa de crescimento. A estabilidade da economia, o edital da Biblioteca Nacional de apoio a traduções e o surgimento dos e-books favorecem o mercado. É curioso que, enquanto vemos uma Europa em crise, aqui temos uma meta a ser alcançada para os livros. Temos um público a conquistar, diferentemente de outros países.

Luciana Villas-Boas, por sua vez, prefere não revelar ainda quem serão os autores de sua agência (leia entrevista na página 2), mas é praticamente certo que Edney Silvestre, Alberto Mussa, Francisco Azevedo e Rafael Cardoso, todos escritores publicados pela Record, estarão entre eles. Ela admite que o bom momento do setor pesou em sua decisão de montar a empresa, mas faz um alerta quanto a comentários nacionalistas que vem ouvindo sobre o investimento de grupos estrangeiros no Brasil:

— O impacto de uma internacionalização da indústria brasileira do livro é positivo para aumentar a profissionalização das relações. Nos EUA, a maior parte da indústria editorial já está completamente desnacionalizada. Há poucas editoras de peso que não foram compradas por grupos estrangeiros. Isso não afeta a literatura americana — diz.

Editoras preparam reestruturação

A nova agente literária se refere às aquisições recentes de editoras brasileiras por grupos estrangeiros. No ano passado, a editora portuguesa Leya, que tem operações no Brasil desde setembro de 2009, comprou 59% das ações da editora carioca Casa da Palavra e ainda passou a cuidar dos lançamentos das obras da Barba Negra, empresa especializada em quadrinhos.

Em dezembro, a principal notícia que surpreendeu o mercado, porém, foi a compra de 45% das ações da Companhia das Letras pelo grupo britânico Penguin, num negócio que pode ter ficado na casa dos R$ 50 milhões. A própria Record, onde Luciana vai se manter como diretora até 31 de março, já sofreu investidas de editoras estrangeiras.

— Eu coloco várias condições para começar uma conversa. Quero saber qual o grau de interesse em comprar a empresa e se será um processo que vai somar. Já houve interesse, mas nunca percebi solidez nas ofertas — afirma Sergio Machado, presidente do Grupo Record. — Acontece que, hoje, qualquer analista internacional que esteja pensando estrategicamente no segmento editorial precisa ter um plano-Brasil. Se eles não estiverem dispostos a entender os ideogramas chineses ou o alfabeto russo, o Brasil é o país que apresenta as melhores opções para o mercado. A questão é que o crescimento da renda da classe média brasileira e as melhorias da educação têm começado a dar resultado no aumento do consumo de livros.

Os sinais de mudança, porém, não estão apenas nas boas relações sendo firmadas entre o mercado editorial do Brasil com o exterior. Por aqui, chamam atenção o fortalecimento de editoras jovens, como a Novo Conceito e a Intrínseca, e a reestruturação de antigas. Assim como aconteceu com a Record, a Objetiva — que, aliás, teve 75% de suas ações compradas pelo grupo espanhol Prisa-Santillana em 2005 — perdeu sua diretora editorial, Isa Pessoa, no fim do ano passado. Ela está na Itália e voltará a atuar no mercado em fevereiro de forma ainda não anunciada. Ambas as companhias estão fazendo reformulações e devem dividir as antigas funções de direção editorial entre mais de um profissional.

Na Companhia das Letras, as novidades vão além. Agora com quatro publishers respondendo a Luiz Schwarcz, a empresa planeja novas frentes editoriais para este ano, sobretudo nos ramos dos livros digitais e nos didáticos, e está reestruturando seu departamento de marketing. Já a Ediouro contratou em setembro Sandra Espilotro, ex-Globo Livros, para dar foco na prospecção internacional dos negócios.

— Sou casado com uma historiadora, então acho que as mudanças não acontecem de uma hora para outra. Nos últimos anos, surgiram novos participantes, novas empresas, algumas estrangeiras, outras nacionais. É um sinal de força que vem se construindo — afirma Schwarcz. — Já faz tempo, por exemplo, que o mercado brasileiro é um importante comprador de direitos. Compramos royalties em valores bastante altos e estamos na prioridade dos agentes literários.

Todos esses investimentos ocorrem, ainda, em meio às especulações sobre o início da operação da livraria virtual Amazon, líder em vendas no mundo, no Brasil. No início deste ano, a empresa americana contratou Mauro Widman, ex-executivo da Livraria Cultura, como seu gerente de vendas para o Kindle. A Amazon já vem negociando com as editoras brasileiras há meses, mas o entrave tem sido o preço: a companhia teria pedido descontos de mais de 60% na venda de livros para lançar o serviço, o que desagradou as casas nacionais. Porém, recentemente a Amazon cedeu a percentuais menores, com a intenção de lançar seus serviços em até seis meses.

Venda de e-books ainda é insignificante

A Amazon também estuda como fará para vender seu leitor de e-books, o Kindle, no país. Hoje, o aparelho só pode ser importado de seu site internacional, mas a empresa estuda até fabricá-lo no Brasil. Se os acordos se concretizarem, o Kindle pode representar o maior incentivo até o momento para a popularização dos e-books — apesar do investimento recente das editoras e de livrarias como a Cultura e a Saraiva, a venda de livros virtuais ainda é quase insignificante frente a de obras físicas.

— A Amazon vai chegar, e a tendência é que os tablets como o Kindle comecem a ficar acessíveis ao grande público. A partir daí o mercado de e-books vai existir — afirma Pascoal Soto, diretor editorial da Leya no Brasil. — Antes mesmo desse período de vacas gordas da economia, o setor dos livros no Brasil já era atraente para o mundo. As pessoas começaram a perceber que existe um país interessantíssimo além do carnaval e do futebol.
>> O GLOBO – da Redação


ANDREA DEL FUEGO: REALIDADE FANTÁSTICA QUE VIROU LITERATURA REALISTA

segunda-feira | 23 | janeiro | 2012

Vencedora do prestigiado prêmio José Saramago com o livro Os Malaquias, Andréa Del Fuego é hoje um dos nomes mais importantes da nova literatura brasileira.

Ela conta que quando escreveu o conto “Como ganhar um Jabuti”, uma crítica sobre a neurose que envolve as vida dos escritores diante de um prêmio literário, Andréa nem sonhava que viria a ganhar um prêmio e muito menos o prêmio fundado pelo autor que ganhou o Nobel de literatura.

Acostumada com textos curtos, contos e livros infantis, Os Malaquias foi a obra que marcou a sua transição para o romance.

Apesar de trabalhar fortemente com prosa poética a escritora afirma: “Eu gosto de escritores que me dão a realidade, sem metáforas”. Mas ao analisar a história que originou Os Malaquias, aquilo que parecia fantástico passa a ser uma realidade impressionante. Andréa escreveu o livro se baseando na história de seus bisavós que foram vítimas de um raio em um vale no interior de Minas Gerais. Os dois faleceram mas seu filhos tiveram apenas machucados leves.

As crianças que ficaram órfãs acabaram sendo separados: a tia-avó foi adotada por uma família árabe em São Paulo, para ser empregada e não filha e o avô de Andréa foi trabalhar em uma fazenda em um esquema similar ao de trabalho escravo. Já o tio-avô Antônio que é anão, na mente de Andréa por muito tempo havia virado anão por conta do raio.

Com esses personagens na vida da autora não foi difícil transpor a história para as páginas, processo que começou quando a avó de Andréa faleceu. Até então Andréa escrevia apenas contos eróticos. Com a morte, que é inclusive um elemento muito presente no livro, ela percebeu que a sua capacidade de escrever ia muito além.

Outro episódio da realidade fantástica que é a família de Andréa pode ser contado na sua própria versão: “O tio Antônio já era bem velhinho, andava descalço com o chapéu de palha e se enfiava no meio do milharal e todos procuravam por ele. Quando ficou mais idoso ele ficou gordinho e tinha uma lordose bem profunda. Ele se sentava na cozinha perto do fogo e ficava lá por muito tempo, até que o gato subia na lordose dele e dormia. Não é para ser escritora?”.
>> TV CULTURA – por Bárbara Dantine
 


JULES VERNE: 20 MIL LÉGUAS DE AVENTURA

segunda-feira | 23 | janeiro | 2012

A edição “definitiva” do livro de Verne
não é para jovens,
mas para velhos amantes da literatura

"20 mil léguas submarinas" (comentada e ilustrada), de Jules Verne

Antes de a ciência médica aparecer com os exames de DNA e os procedimentos de barriga de aluguel, alguns piadistas misóginos costumavam dizer que a identidade da mãe é sempre uma certeza; já a do pai jamais passa de mera conjectura. A ficção científica, como forma literária, se encaixa bem nesse antigo aforismo da cafajestagem: a mãe é obviamente Mary Shelley, autora do assombroso Frankenstein, mas e o pai? Seria o francês Jules Verne ou o britânico H.G. Wells?

Verne certamente começou antes, tendo publicado em 1863 o romance Cinco Semanas em Balão, narrativa em que um grupo de exploradores sobrevoa a África num balão que, para os padrões da época, era quase uma nave espacial. Esse livro veio a público três anos antes de Wellsnascer. Os defensores da primazia do britânico (culpado, meritíssimo) geralmente argumentam com base numa certa concepção de ficção científica: enquanto, em Wells, a ciência é um meio para entender e modificar o mundo, em Verne ela é apenas o pretexto da aventura.

Em Guerra dos Mundos ou na Máquina do Tempo, por exemplo, vemos a civilização ocidental soçobrar sob um ataque alienígena, num caso, ou debaixo de pressões econômicas, sociais e biológicas, no outro. Em Viagem ao Centro da Terra ou 20 Mil Léguas Submarinas, em comparação, o que temos é a aventura científica servindo como uma espécie de parêntese em meio ao fluxo do status quo, que prossegue inabalado. Nesse aspecto, os livros de Verne lembram muito as histórias de super-heróis dos anos 50 e 60, nas quais nenhuma revelação, fosse a da existência de vida extraterrestre ou do ressurgimento da Atlântida, era capaz de abalar a rotina das donas-de-casa de vestido rodado e de seus maridos de terno marrom, chapéu e gomalina.

Se o título de Verne a pai da ficção científica é contestado, é difícil, no entanto, negar a ele a paternidade de outro gênero popular, o technothriller, onde tramas rocambolescas são desencadeadas por, e giram em torno de, avanços tecnológicos únicos, muitas vezes descritos com um nível obsessivo de detalhe. É difícil imaginar Tom Clancy ou mesmo Michael Crichton sem Verne. E Caçada ao Outubro Vermelho, o livro mais famoso de Clancy, provavelmente não existiria sem o antecedente de 20 Mil Léguas Submarinas.

É deste romance, talvez o mais famoso de Verne, que chega uma “edição definitiva” publicada pela Zahar. Suponho que a maioria dos leitores desta resenha já esteja familiarizada com o enredo geral da obra, mas aqui vai um breve resumo: nos anos finais da década de 1860, o biólogo francês Pierre Aronnax, acompanhado por seu fiel valete Conselho e por Ned Land, um intrépido arpoador de baleias canadense, se vê aprisionado a bordo de um magnífico submarino, o Náutilus, e à mercê de seu comandante, o anti-heroi quase-byroniano Capitão Nemo. Na condição de hóspedes involuntários de Nemo, os três percorrem 20.000 léguas sob as águas do mar, visitando as ruínas da Atlântida, os campos de cultivo de pérolas do Pacífico e a Antártida.

Quem conhece outras “edições definitivas” lançadas pela mesma casa editorial, como as de Sherlock Holmes, anotadas pelo estudioso Leslie S. Klinger, ou a Alice de Lewis Carroll, anotada por Martin Gardner, corre o risco de se desapontar: as notas do tradutor André Telles são úteis, interessantes e corretas, mas estão longe de oferecer a exuberância de estilo e erudição desses outros títulos, onde muitas das anotações se desdobram em verdadeiros ensaios históricos e literários.

O papel ensaístico fica por conta da mais que interessante introdução de Rodrigo Lacerda, que contextualiza, para o leitor desavisado, a gênese das Viagens Extraordinárias – série que inclui, além das 20 Mil Léguas, outros títulos famosos, como Viagem ao Centro da Terra, por exemplo. Lacerda lembra que as Viagens foram concebidas como folhetins paradidáticos, publicados como uma espécie de suplemento literário de um periódico infanto-juvenil chamado Revista de Educação e Recreação.

Essa concepção, da obra ficcional como uma espécie de “colherada de açúcar” que ajuda o xarope amargo da ciência a descer pela goela dos jovens, é uma que ainda persegue a ficção científica em várias partes do mundo, e segue tendo muita força na mentalidade editorial brasileira. Ela ajuda, também, a entender as principais limitações dos livros de Verne, a saber: o caráter episódico da ação; a natureza caricatural de boa parte dos personagens; e os fantásticosinfodumps.

Parte do jargão dos escritores de ficção científica, “infodump” – literalmente, “despejo de informação “ – é o momento em que a ação da narrativa para, a fim de que algum tipo de informação seja transmitida ao leitor. Histórias passadas no futuro têm infodumps sobre os costumes, a moral e a sociedade em que a trama se passa; histórias sobre armas nucleares têminfodumps sobre física atômica; e assim por diante.

Momentos de infodump tendem a ser especialmente desajeitados, e iseri-los no fluxo narrativo sem perder o leitor é um dos grandes desafios técnicos da escrita de ficção científica. No caso dasViagens Extraordinárias de Verne, no entanto, o infodump é a razão de ser do livro: na lógica daRevista de Educação e Recreação, as aventuras do Professor Aronnax e do Capitão Nemo são apenas um pretexto para que os petizes franceses de 1870 aprendam que os peixes podem ser cartilaginosos ou ósseos, que polvos, lulas e calamares são cefalópodes, quais são as principais variedades de vida comestível dos mares do mundo e como preparar uma refeição decente à base de fruta-pão.Entre outras coisas.

Em sua introdução, Lacerda diz que é virtualmente impossível encontrar uma edição brasileira de 20 Mil Léguas, anterior à “defintiva” da Zahar, da qual os infodumps, principalmente os extensos parágrafos de descrição taxonômica da vida marinha, não tenham sido extirpados. Ele elogia a arte de Verne na construção dessas passagens (como: “no ramo dos zoófitos e na classe dos alcionários, observa-se a ordem das gorgonáceas…”), notando que o autor consegue encadear as descrições forma quase poética, e muitas vezes obter belos efeitos literários (“focas de barriga branca e pelagem preta, conhecidas como “monges”, por terem efetivamente o aspecto de dominicanos com três metros de comprimento”.)

Mesmo reconhecendo a importância de uma edição integral do romance em português, no entanto, vejo-me forçado a confessar que os trechos mais explicitamente didáticos quase me fizeram desanimar da leitura.

O verdadeiro gênio de Verne, a meu ver, está na capacidade de criar imagens de pura imaginação, como quando o Náutilus é avistado, pela primeira vez, por Aronnax, que se espanta com a forma como o submarino ilumina a água do mar:

O halo de luz descrevia sob o mar um arco amplo e retesado, do qual o centro condensava-se num foco ardente, cujo insustentável brilho apagava-se por gradações sucessivas.

Quantas vezes essa mesma cena já não foi vista, em filmes e episódios de TV que tratam misteriosos objetos submarinos? E, no entanto, muito provavelmente surgiu, inédita, da pena do escritor francês. Essa é a verdadeira capacidade de antecipação de Jules Verne. Não “prever” o submarino, mas prever, literariamente, qual o efeito poético que a aparição súbita de um submarino teria sobre o espírito humano.

O poder evocativo do autor ressurge, bem adiante, na descrição de um naufrágio visitado pelo Náutilus, onde Aronnax vê, iluminado pela luz fria do submarino, o cadáver de uma mulher ainda preso ao caso submerso, que “erguera o filho acima da cabeça, pobre criaturinha, cujos braços abraçavam o pescoço da mãe”.

Quanto a personagens, de fato 20 Mil Léguas Submarinas só tem dois dignos do nome: o próprio submarino Náutilus e seu capitão, o enigmático Nemo.

Ficamos sabendo, na introdução de Lacerda, que Nemo deveria ser um revolucionário polonês, que perdera a família numa repressão provocada pelo governo russo. Induzido pelo editor a abandonar essa biografia de seu personagem – por questões comerciais e políticas – Verne simplesmente desiste de dar uma vida pregressa a seu enigmático capitão (uma biografia diversa da do rebelde polonês aparece em uma obra posterior, A Ilha Misteriosa).

Mesmo sem uma vida pregressa ou uma motivação clara, no entanto, Nemo – feroz, inteligente, irônico, assombrado, melancólico – é o ser humano mais bem acabado do livro e sua obra, o submarino Náutilus, é uma extensão de sua personalidade.

Dos demais, Aronnax é às vezes um professor arquetípico de Ciências, o mesmo tipo de que Monteiro Lobato viria a troçar, ainda que com afeto e simpatia, na figura do Visconde de Sabugosa; seu criado, Conselho, faz as vezes de aluno, a quem Aronnax faz perguntas cuja resposta já conhece, para edificação do leitor; e o arpoador Ned Land está ali apenas para dar a Conselho um parceiro para cenas cômicas.

Mencionei, também, o caráter episódico da obra. Se alguns desses episódios têm um vibrante poder literário – como o funeral submarino ou a visita à Atlântida – ou são aventuras que nada ficam a dever aos melhores textos do gênero – o combate com a lula gigante logo vem à mente – o fato é que a falta de um desenvolvimento mais notável dos personagens, ou do propósito da viagem do Náutilus, somada às aulas de taxonomia marinha, tornam a leitura, por vezes, penosa.

A edição definitiva de 20 Mil Léguas Submarinas não é, hoje, um livro para jovens (a menos que se trate de um jovem candidato a oceanógrafo); também é um livro que poderá desapontar os que têm, das antigas versões condensadas, uma forte memória afetiva vinda da infância. Como peça histórica, o livro chama atenção para os alertas que Verne põe na boca de Nemo e de Aronnax quanto ao risco de extinção de baleias e morsas por meio da caça predatória: isso na década de 60 do século retrasado, o que mostra que o problema mão é novo.

Mais do que uma peça de nostalgia ou curiosidade histórica, no entanto, trata-se de um livro para os amantes de literatura: o desafio de exploração da linguagem de Verne, a tentativa de extrair poesia do jargão da ciência, merece ser enfrentado. Nem que seja para que o leitor chegue, ofegante e sedento como os tripulantes do Náutilus, à fantástica luta com a lula gigante dos capítulos finais.
>> AMALGAMA – por Calos Orsi


FICÇÃO CIENTÍFICA TUPINIQUIM

segunda-feira | 23 | janeiro | 2012

Como escrever literatura de ficção científica no Brasil? Este problema não é muito diferente do problema que deve ter se colocado a muitos escritores dos séculos 17 e 18 que queriam apenas escrever literatura brasileira, não importa sobre o quê, mas que fosse escrita no Brasil e sobre o Brasil. Havia alguns milhares de intelectuais formados em Coimbra e sei lá onde mais, cheios de ambições literárias, querendo cantar em prosa e verso aquele mundo bárbaro e fascinante. Liam grego e latim, tinham estudado Camões, Virgílio, Homero. Queriam escrever sobre o Brasil, e ser lidos pelos brasileiros.

Esses escritores-em-projeto tinham como instrumento uma tradição literária basicamente portuguesa e européia, e eram forçados a usar essa tradição para refletir uma realidade, a do Brasil dessa época, que deve em muitos momentos ter lhes parecido intraduzível, irreproduzível através daquele instrumento. A começar pelo fato de que, naquela época, a língua falada nas ruas e nas casas do Brasil não era propriamente o português de Camões e do Padre Vieira, o português que os literatos aprendiam nas universidades e nos claustros. O Brasil desse tempo era um fervilhar de feitorias, engenhos, fazendas e arraiais cheios de gente seminua e analfabeta, falando em nheengatu, a famosa “Língua Geral” criada pelos jesuítas. Fazer literatura assumindo o ponto de vista daquela gente bárbara era uma missão impossível para aqueles literatos. O que fazer, então? Prolongavam a literatura portuguesa, usando suas formas, seus estilos, seus gêneros, seus temas, sua linguagem. Essa literatura, principalmente a poesia, era uma espécie de verniz verbal que recobria a realidade rude, e resolvia para os autores o problema da auto-expressão. De Gregório de Matos aos inconfidentes, foi este precário equilíbrio que ajudou a produzir uma poesia brasileira. (A prosa, no sentido que a vemos no romance, ainda engatinhava.)

Há alguma semelhança entre essa situação e a situação do escritor-fã de FC no Brasil, porque ele também tem nas mãos um instrumento literário forjado no estrangeiro, e que para refletir o mundo que o escritor tem à sua volta precisa ser reformatado. Canibalizado. Desmanchado e recomposto. O erro do escritor brasileiro de FC é achar que seu compromisso é o de expandir a FC que aprendeu a amar como leitor. Talvez seu dever seja o de explodir essa literatura, enxertá-la de contradições capazes de gerar atrito e fagulha em contato com formas de pensar, de falar e de agir que inexistiam no mundo de quem gerou o mundo das espaçonaves, das viagens no tempo, dos impérios galácticos, das catástrofes cósmicas, dos super heróis.
>> MUNDO FANTASMO – por Braulio Tavares


STEAMPUNK PAULISTA

segunda-feira | 23 | janeiro | 2012

Jovens de São Paulo adotam estilo vitoriano
e idolatram tecnologia a vapor


Nos dias atuais, tem muita gente projetando que o eterno país do futuro Brasil emergirá como uma potência do século 21. Mas, alguns brasileiros preferem imaginar que já habitam um império, só que do passado. Eles reverenciam uma Londres do século 19, acham que os mares são ingleses e que o sol nunca se põe nos vastos territórios da rainha Vitória.

E nem só verão tropical atrapalha os nossos vitorianos. “Não avisaram vocês que o Carnaval já acabou?”, faz troça um pândego que passa pela curiosa órbita de donzelas de espartilho e rapagões de fraque se dirigindo para um piquenique no parque Trianon, em plena avenida Paulista.

“O pessoal vive perguntando onde é a peça de teatro. Ou pede para tirar fotos junto”, resigna-se Eduardo Castellini, que também atende pela alcunha de Lord Fire. Ele e sua pequena assembleia adentram no bosque atlântico decorado à maneira europeia, deixando para trás o escarcéu de uma batucada de estudantes na calçada.  Ao lado de uma fonte de água, começam o festim.

Essa tribo urbana possui uma vantagem magnífica sobre as outras: a consideração e a estima dos pais pelo modo respeitável de seus hábitos. “Eu era gótica. Minha mãe torcia o nariz e falava que eu parecia um urubu. Descobri o estilo vitoriano, passei a usar corsets, vestidos longos e gargantilhas. Agora minha mãe adora”, folga em dizer Jéssica Nascimento, que dispõe ainda de trajes de milady, aviadora, lolita e governanta.

No tocante à moral vitoriana, Jéssica confessa que é impossível seguir à risca suas manias e seus pudores, mas conserva-se um cavalheirismo dentro do grêmio. “Tratamos as mulheres como damas. A Inglaterra vitoriana era uma época de mais respeito”, opina Lord Fire.

Esse ressurgimento nos últimos anos surgiu no estrangeiro e foi nomeado de steampunk. Decerto esses sujeitos garbosos são mais steam (vapor) do que punk.

Uma explicação se faz necessária: o termo é derivado de cyberpunk, tipo de ficção científica que mostrava o homem dominado pelas máquinas – o livro fundador dessa onda, “Neuromancer” (1984), é do norte-americano William Gibson, autor que cunhou o termo “cyberspace”.

No lugar de pesadelos no mundo virtual e de vilões eletrônicos do cyberpunk, o steampunk é ambientado no começo da Revolução Industrial, quando a energia vinha das nada ecológicas caldeiras a vapor e os mecanismos eram movidos por engrenagens.

Esse subgênero literário privilegia os enredos da chamada  “história alternativa”, projetando que a tecnologia daquela época atingiria a criação de computadores de madeira e aviões movidos a vapor. Saindo do universo livresco, o movimento gerou uma subcultura que dispõe de músicas, vestimentas e códigos próprios. O filme preferido é “A Liga Extraordinária” (2003), e as bandas que o representam são Abney Park, Dresden Dolls e Clockwork Quartet.

Esse clube também tem um pé na onda RPG (Role-Playing Game), jogos em que os participantes incorporam personagens e criam coletivamente uma história. Por outro lado, alguns vitorianos participam de eventos de cosplay (mania de se vestir como personagens da TV ou das histórias em quadrinho).

Esses dois fatores mostram a teatralidade que os steampunks cultuam. Durante o piquenique, por exemplo, apareceu uma garota vestida de Alice, portando um coelho de pelúcia. “Perdão, acabei atrasando, mas a culpa é dele”, disse, apontando para o animalzinho e remetendo diretamente ao clássico de Lewis Carroll “Alice no País das Maravilhas”.

“Salve, salve. Junte-se ao grupo”, foi saudada a adolescente por Lord Fire, logo preocupado com a alimentação das moçoilas presentes: “Sugiro às amigas que provem este sanduíche de patê”.

No parque inaugurado em 1892, uma toalha quadriculada recebe um cesto de vime, de onde saem potes de geléia, biscoitos e outras amabilidades. Eles não lembraram do solene chá, e o líquido mais farto por lá é o refrigerante pátrio Diet Dolly. Até uma pizza e um leite de soja deram o ar da graça.

“Saí de casa tão apressada que esqueci de trazer minha xícara de porcelana com flores delicadas”, lastimou Alice, bebericando em copo plástico.

Quando o assunto passa à aclimatação dessa moda vitoriana futurista ao Brasil, não demoram a surgir figuras da história local para justificar a procedência desses fidalgos do século 21. “D. Pedro 2º foi um imperador steampunk”, define Luis Fernando de Oliveira (ou Jack Grave), lembrando que o monarca se encontrou com eminentes personalidades da época, como Nietzsche e Victor Hugo. “Ele tinha muito interesse em ciência e cultura. Mas outros steampunks foram o Barão de Mauá, por ser o primeiro industrial do Brasil, e Santos Dumont, como pai da aviação”, sentencia Lord Fire, cujo ofício é justamente o de técnico de aviação.

Outra matéria querida para eles é a decoração vintage dos dispositivos eletrônicos atuais. Ao contrário do que se possa pensar, as damas e os cavalheiros estão longe do ludismo, movimento do século 19 que preconizava a destruição das máquinas. Eles não renunciam às facilidades modernas, apenas cuidam de revesti-las como se tivessem saído de um antiquário. “Nós vivemos atualmente no mundo que os escritores do século 19 imaginaram. Estamos realizando o que eles fantasiaram”, pondera Lord Fire, que tem um laptop em forma de máquina de escrever. Já Jack Grave se orgulha de um netbook em forma de livro antigo.


Muito tempo atrás a vida era pura / O sexo era sujo e obsceno / Os ricos eram tão mesquinhos / As casas de campo para os lordes / Campos de croquet e gramados / Vitória era minha rainha

Tradução da letra de “Victoria“, canção do grupo de rock inglês dos anos 1960 The Kinks, regravada pelo The Fall na década de 80.

Relógios digitais de bolso e celulares com manivela mostram essa adoção mais decorativa que funcional. Vale também criar a sensação de anacronismo cobrindo com madeira, couro e bronze iPhones e telas de LDC.

Os seguidores nacionais, porém, tem contato tão somente pela internet com objetos steampunks mais notáveis,  como uma engenhoca que faz um braço biônico se mover alimentado pela energia gerada por uma caldeira instalada nas costas de seu usuário estado-unidense.

Os vitorianos adoram se aprumar. As mulheres ostentam camafeus sobre  os vestidos com cauda e os corsets que afinam a cintura, apertando as carnes e a respiração. Já os lordes brasileiros se deleitam com acessórios, como cartola, monóculos, bengala, colete e cachimbo. O brasão bordado é um opcional.

“Para a gente, é uma imersão. As roupas ajudam a entender como viviam as pessoas da época. Nós escrevemos contos steampunks e temos que saber, por exemplo, como é uma perseguição com fraque”, justifica Lord fire.

Os steampunk preferem Julio Verne a Machado de Assis, e Conan Doyle a José de Alencar. Escrevem ficção até com um certo linguajar desse período, mas esse subgênero pop não combina com o estilo descritivo e por vezes solene de dois séculos atrás. “A gente pode considerar O Xangô de Baker Street, do Jô Soares, como o primeiro livro steampunk do Brasil”, decreta Lord Fire.

Além do piquenique, o programa predileto do grupo é andar de trem Maria Fumaça, visitar lojas de antiguidade e comprar em ferro velho e brechó. “Vejo um brechó e já entro. Adoro comprar espartilhos. Quando visto um, aí sim, me sinto no século 19”, confessa Jéssica. Já Jack Grave prefere ir à rua Santa Ifigênia, centro paulistano de eletrônica, onde adquire toca-fitas quebrados para logo desmontar e aproveitar as engrenagens.

De forma bem vitoriana, os steampunks seguem uma hierarquia. Há um conselho nacional, ligados a lojas (isso mesmo, termo inspirado nas unidades maçônicas, tão típicas daquele século 19) em cada Estado – Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul são as “lojas” mais ativas fora de São Paulo.
>> UOL Notícias – por Rodrigo Bertolotto

Tecnologia a todo vapor

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    Teclado de computador retrô ganha botões de máquina de escrever e borda dourada
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    O celular steampunk tem ponteiro para indicar volume e cartões perfurados para a discagem
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    O fascínio pelas engrenagens fica claro neste pen drive coberto ainda por madeira e parafusos

O MERCADO DE QUADRINHOS NO BRASIL

sexta-feira | 20 | janeiro | 2012

Gabriel Bá comenta lançamentos de 2012 e a influência da internet nos quadrinhos

Para os aficionados por quadrinhos, o ano de 2011 foi um prato cheio. Com vários lançamentos no mercado editorial brasileiro, também foi um período de prêmios internacionais — os gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon, com  a obra “Daytripper”, faturaram o prêmio Eisner Award, um dos mais importantes do mundo dos quadrinhos.

Em entrevista exclusiva, o quadrinista Gabriel Bá fala sobre o mercado de quadrinhos no Brasil e conta sobre as facilidades que a internet trouxe para quadrinistas que, segundo ele, trabalham cada vez mais de forma independente.

Gabriel Bá: “Talvez a internet seja o melhor veículo para propagação dos quadrinhos.” Foto: J.R. Duran

O ano de 2011 parece ter sido especial para os quadrinhos brasileiros — vocês, por exemplo, ganharam os prêmios Eisner Award e Harvey Award. O que os aficionados por quadrinhos podem esperar de 2012? E com relação ao trabalho de vocês?
Gabriel Bá: Creio que há dois projetos legais que devem ser lançados neste ano. O primeiro deles é oGraphic MSP, do Maurício de Sousa, que traz uma releitura das histórias da Turma da Mônica feitas por quadrinistas como Gustavo Duarte, Danilo Beyruth, Shiko, Vitor e Lu Cafaggi. O outro lançamento vem da parceria entre escritores e quadrinistas. Trata-se de uma série de graphic novels idealizada pelo produtor de cinema Rodrigo Teixeira, em parceria com o escritor Joca Terron. O primeiro volume, “Cachalote”, já foi lançado em 2010. Dos nossos trabalhos, devemos lançar “Casanova” em formato gibi. Também temos outra publicação que não é de quadrinhos — chama-se “Cidades Ilustradas”. Trata-se de um projeto que revela cidades brasileiras pelo traço de vários artistas. Eles levam os autores a cidades que eles não conhecem e, em seguida, os autores fazem um livro com suas impressões. A cidade que estamos trabalhando é São Luís, no Maranhão.

As mudanças que ocorrem no mundo real — linguagem da internet, comunicação rápida e instantânea — afetaram a forma de fazer quadrinhos? 
Na forma de se produzir quadrinhos, não houve mudanças. Talvez a internet tenha ajudado na divulgação desse trabalho, sob diferentes aspectos. Com as tiras, funciona muito bem, que são curtas e rápidas. Só não é melhor que o jornal, porque de certa forma ele já está estabelecido, todo mundo sabe que nesse tipo de publicação já há aquele espaço reservado para tirinhas que todos conhecem. Mas a internet permite que todos tenham acesso aos trabalhos e até mesmo aos autores. Aqueles que gostam de quadrinhos podem seguir, comentar e obter respostas dos quadrinistas, além de poder ver truques e dicas sobre como produzir quadrinhos.

Essa interatividade com os leitores já influenciou algum trabalho de vocês?
Sempre pensamos sobre aquilo que os leitores falam e levamos em consideração as respostas e comentários. Mas como nós trabalhamos sempre juntos, temos que entrar em um acordo. De toda forma, não fazemos disso uma novela, que só quer ganhar mais ibope. Nossos projetos são sempre muito bem pensados, trabalhamos sempre em dupla e discutimos muito sobre eles. Levamos em média dois anos para realizá-los e, quando terminamos, é difícil ter algo que não tenha sido pensado. E nos envolvemos apenas em projetos nos quais acreditamos.

A partir do Daytripper, vocês ganharam notoriedade como contadores de histórias, e não só como desenhistas. Como foi isso?
Com o “Daytripper”, ganhamos destaque maior como contadores de histórias. Antes éramos só desenhistas. Nosso trabalho não é o mais comercial, e com o “Daytripper” mostramos que temos um estilo, uma história para contar. Acredito que o público e o mercado vão nos ver com outros olhos. De toda a forma, continuamos equilibrando esses dois tipos de trabalho.

Em 2011, ganhou corpo um projeto de lei que obriga editoras de quadrinhos a reservar no mínimo 20% para trabalhos nacionais. O que você acha dessa proposta?
Não sei se vai ajudar muito. Essa proposta fala em utilizar mais quadrinhos na escola e ensinar as técnicas para fazê-los. Acho que isso é interessante, pois ajuda a criar público, que também é muito importante. Esse projeto de lei que obriga a ter uma reserva de 20% de títulos nacionais talvez funcione para editoras grandes. As pequenas talvez não tenham como publicar mais títulos. Há também as editoras de mangás, que trabalham com obras estrangeiras e não conseguiriam trabalhar dessa maneira. Não acho que vá beneficiar os autores, uma vez que eles não irão receber mais dinheiro por isso. Não dá para ficar esperando as coisas caírem do céu. E, pelo que tenho visto, a maioria dos autores na área de quadrinhos também não. Muitos estão procurando mostrar seu trabalho de forma independente. Acredito que o mais importante é criar e formar um público de quadrinhos, utilizando a escola, por exemplo.
>> CONTAFIO – da Redação


APOCALIPZE: WEBSÉRIE DE FICÇÃO CIENTÍFICA COMEÇA A SER GRAVADA EM BELO HORIZONTE

quinta-feira | 19 | janeiro | 2012

Depois de se aventurar em histórias sobre a Segunda Guerra Mundial com o filme para a internet Heróis da FEB, o cineasta mineiro Guto Aeraphe aposta agora em uma websérie de ficção científica recheda de efeitos especiais. O seriado, dividido em cinco capítulos de oito minutos, mostra os acontecimentos de um desenvolvido Brasil futurista que foi alvo de um ataque terrorista repentino, deixando poucos sobreviventes e diversas dúvidas.

Na trama, praticamente toda a população foi morta vítima de uma contaminação mortal e alguns dizem que os culpados foram os árabes, enquanto outros dizem que foram os americanos. Ninguém sabe ao certo, mas há rumores que vários agentes paramilitares e grupos do tráfico estão atuando em nome do Clube Bilderberg – uma organização conspiratória formada por representantes dos países desenvolvidos, instituições religiosas e grandes empresas.

Em meio ao caos, um professor de Biomedicina sobrevivente se junta a outros que tentam entender o que de fato aconteceu, enquanto tentam fugir de forças que lutam pelo controle das riquezas naturais nacionais – como as jazidas de petróleo do pré-sal. “A websérie vai mexer com o imaginário do público. Vai convidá-lo para uma história e ele terá que ser conduzido por ela. Se ele seguir esse trato, vai ser surpreendido” conta Aeraphe.

“Estamos vivendo a ‘era das telinhas’. As imagens se movimentam em qualquer lugar. No tempo de espera de um dentista, a pessoa consegue assistir a um capítulo de uma websérie com tranquilidade” completa o cineasta independente que vê na internet como uma nova alternativa para se fazer cinema. Audacioso, o projeto de ApocalipZe conta ainda com um jogo  virtual de tiro para computador e uma história em quadrinhos para download.
>> REVISTA RAGGA – por Guilherme Avila

 Veja as fotos do making of da websérie ApocalipZe

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“WEIRD TALES”: O PULP QUE APRESENTOU A LITERATURA FANTÁSTICA AO MUNDO

terça-feira | 17 | janeiro | 2012

Na primeira década do século XX, o que ocupava a cabeça e esvaziava os bolsos de jovens e muitos adultos eram magazines mensais com contos de ficção científica e fantasia heróica. Trazendo quase sempre em suas capas personagens exóticos ou garotas voluptuosas correndo perigo, estas “revistas” eram feitas da parte mais barata do papel, conhecido como “polpa” e deram origem ao termo “Pulp”.

A revistas “pulp” não tinham pretensão literária e se destinavam à entretenimento despretensioso, rápido e barato. Mas mesmo assim grandes escritores iniciaram suas carreiras nelas, gente do calibre de Isaac AsimovDashiell Hammett e Raymond Chandler. E as histórias em quadrinhos começaram sua trajetória como uma “evolução” dos pulps, já queGil Kane (Lanterna Verde, Esquadrão Atari), Mort Weisinger (co-criador do Arqueiro Verde e do Aquaman) e Julius Schwartz (lendário editor da DC Comics) também escreveram nestes revistas também.

E dentre as centenas de revistas que existiam na época, uma ostentava o slogan “Uma Revista Sem Similar”. Seu nome era Weird Tales.

Foi criada em 1923 por J. C. Henneberger, um ex-jornalista que possuía um peculiar gosto por histórias macabras fossem reais ou fictícias.  O segundo editor da revista foi Fransworth Wight, que tentando equilibrar a Weird Tales entre as exigências do mercado e seu gosto por literatura fantástica, deu a publicação uma identidade única.

Já publicava contos de H. P. Lovercraft (preciso mesmo explicar quem é esse cara?), quando, em julho 1925, teve em suas páginas o conto “Lança e Presa”, de Robert E. Howard. Daí em diante o Howard foi ficando cada vez mais frequente, ganhando sua primeira capa em abril de 1926 com o conto “Sombras Vermelhas”, onde apresentou o personagem Salomão Kane, um puritano do XVI que vaga pelo mundo caçando, monstros, demônios e feiticeiros, armado somente com uma espada e uma pistola. Outros personagens de Howard que fizeram sucesso foram Kull e Bran Mak Morn.

E em dezembro de 1932 temos a estréia de Conan da Ciméria com o conto “A Fênix na Espada”. Mesmo com Howard sendo um dos autores favoritos dos leitores, estréia do bárbaro não ocupou a capa da revista. Aqui temos Conan já em idade avançada como rei da Aquilônia tentando sobreviver à uma tentativa de assassinato.

O personagem foi bem recebido e não tardou para ser um dos pilares da revista, estrelando diversas capas. A Weird Tales não limitou-se a publicar somente contos, mas diversos poemas de Howard envolvendo seus personagens tiveram espaço nas páginas da revista.

Quando Wight morreu, a revista mudou sua linha editorial. Em meio a concorrência com livros de bolso, histórias em quadrinhos e novelas de rádio, a editora passou por dificuldades financeiras e a Weird Tales foi cancelada em 1954. A revista ressuscitou em 1970 com quatro edições e foi cancelada novamente. Uma nova surgiu em 1981 e dura até hoje, como revista bimestral. Clique aqui e conheça o site oficial da revista!

>> CONTRAVERSÃO – por Aléssio Esteves


PROGRAMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA NO MARANHÃO FECHOU O COMÉRCIO E LEVOU EXÉRCITO ÀS RUAS

sexta-feira | 13 | janeiro | 2012

Livro e CD "Outubro de 71: Memórias Fantásticas da Guerra dos Mundos".

Uma adaptação radiofônica da obra de ficção científica “A guerra dos mundos” (publicada em 1898 por H. G. Wells) pôs o Exército em alerta, fechou boa parte do comércio e provocou pânico generalizado entre a população.

Não se trata da célebre encenação levada ao ar em 1938 por Orson Welles nos EUA, mas de uma versão que, em 1971, comemorou o aniversário da rádio Difusora, de São Luís (Maranhão), transformando a rotina da cidade – como ocorrera 33 anos antes durante a emissão americana.

“O programa foi interpretado pelos ouvintes não como uma invasão alienígena, conforme seu roteiro, mas como se fosse o próprio fim do mundo”, explica o professor Francisco Gonçalves da Conceição, organizador do livro “Outubro de 71 – Memórias fantásticas da guerra dos mundos”, que reconstitui a histórica transmissão.

Fruto de três anos de trabalho de uma turma de graduação em Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão, a obra transformou o então pacato sábado 30 de outubro de 1971 naquele que, para muitos de seus ouvintes, seria seu último dia sobre a Terra.

Reação nas ruas
Os relatos sobre as consequências da transmissão são conflitantes, mas sabe-se com certeza que o comércio do centro histórico de São Luís fechou as portas – as pessoas queriam ir o quanto antes para suas casas a fim de “morrer” ao lado dos familiares. Naquele dia, os motoristas de táxi tiveram trabalho de sobra.

“Não tínhamos o que fazer, era uma brincadeira. Mas não sabíamos o alcance e o poder do veículo que tínhamos nas mãos”, afirma Manoel José Pereira dos Santos, o Pereirinha, 61 anos, responsável pelos efeitos sonoros do programa – fundamentais para ampliar a sensação de pavor dos ouvintes.

Na memória coletiva da cidade há lembranças de pessoas acendendo velas, pregadores reunindo grupos para a leitura do Evangelho, e personagens proeminentes (como políticos) confessando traições amorosas e pedindo perdão de joelhos às mulheres. Enfim, um pandemônio.

Além disso, uma unidade do Corpo de Bombeiros chegou a ser acionada durante o programa, e um oficial do Exército que participava de um churrasco em Pinheiro, a cerca de 90 km de São Luís, fretou um voo (depois pago pela rádio Difusora) para levá-lo à capital, onde constatou que o relato da Difusora não correspondia à realidade.

Por causa disso, e depois de encerrada a transmissão, uma patrulha do Exército invadiu a rádio e exigiu sua lacração – a emissora ficou fechada por três dias.

As consequências para os radialistas (ninguém foi preso ou processado) só não foram maiores porque eles conseguiram enxertar, em dois momentos da gravação que foi analisada à época pela Polícia Federal, o aviso de que o programa era uma obra de ficção, que não foram ao ar na emissão original.

“Quando a ficha caiu, eu acho que as pessoas ficaram com muita vergonha de terem sido enganadas. Isso ajudou também a esfriar o assunto, deixar que ele praticamente ficasse esquecido por quatro décadas”, analisa Pereirinha.

Da ideia à realização
Sérgio Britto, pseudônimo de José de Jesus Brito, hoje aos 72 anos, conta que teve a ideia do programa ao ler, numa edição da revista masculina “Ele&Ela” (publicada na década de 70 pela Bloch Editores), a sinopse da radionovela com a qual Orson Welles eletrizou – e apavorou – audiências em 1938 pela rádio CBS.

O primeiro passo foi a adaptação do roteiro para o Maranhão – na versão de Welles, os fatos se passam apenas nos Estados Unidos. “Acrescentei uma série de coisas que não constam nem no livro de Wells nem no programa de Welles”, conta Britto.

Como a visita de um cientista ao Maranhão e o pouso de um “estranho objeto” no Campo de Perizes, até hoje a única saída terrestre da ilha de São Luís. “Eu tinha medo de uma fuga em massa acontecer, então coloquei uma nave espacial ali”, relembra.

Apesar de o roteiro ter sido aprovado pelo departamento de censura da Polícia Federal, Brito diz que estava debruçado sobre ele horas depois da liberação da PF. “Aprovaram um negócio qualquer lá, sem ter muita noção do que se tratava”, conta. Dissociado dos efeitos sonoros, o programa também perdia muito de seu impacto.

Na época, a rádio Difusora já possuía uma emissora de TV, mas nos primórdios ela ficava no ar apenas algumas horas por dia (sempre entre a tarde e à noite, normalmente a partir das 14h). “É por isso que decidimos que a Guerra dos Mundos precisava ir ao ar pela manhã de qualquer jeito”, diz Brito.

A Guerra dos Mundos maranhense foi ao ar sem nenhum tipo de ensaio: os participantes (entre eles o locutor Rayol Filho, que comandava o “São Luís Hit Parade”, programa musical bastante popular na época) foram recebendo os textos praticamente no momento em que deveriam ser lidos.

Ao mesmo tempo, efeitos sonoros que simulavam interferências e transmissões em ondas curtas – a Difusora chegou a “entrar em cadeia” coma fictícia rádio Repórter, do Rio, que dava informações mais atualizadas dos estranhos fenômenos espaciais que antecederam a invasão marciana relatada na ficção – garantiam o ar dramático à representação.

Diferentemente da versão de Welles, o programa maranhense foi ar transmitido em flashes durante dois programas musicais de bastante sucesso no rádio de São Luís, entre 7h30 e 12h30.

A gravação agora recuperada, porém, começa uma hora e meia depois porque o sonoplasta se atrasou naquele dia (toda a programação das emissoras de rádio e TV do país tinha de ser gravada obrigatoriamente por determinação da Censura Federal – eram os tempos da ditadura militar).

“O que fica desse episódio, antes de mais nada, é a saudade dos meus 21 anos”, brinca Pereirinha. Assim como ele, outros personagens da histórica transmissão acham que um novo mal-entendido por causa da obra de H. G. Wells não seria possível na era da internet. “Hoje, daqui da minha casa, aperto uma tecla no meu computador e consigo checar uma informação. Em 1971, isso era praticamente impossível”, diz Brito.
>> VNEWS – da redação

Primeira parte do programa A Guerra dos Mundos que foi ao ar na Rádio Difusora em 30 de outubro de 1971. São Luís – Maranhão.

Segunda parte do programa A Guerra dos Mundos que foi ao ar na Rádio Difusora em 30 de outubro de 1971. São Luís – Maranhão.

Confira abaixo entrevista com Francisco Gonçalves sobre os detalhes da pesquisa que resultou no livro:

O grupo é formado po Francisco Gonçalves, Aline Cristina Ribeiro, Andréia Lima, Elen Mateus, Kamila Mesquita, Karla Miranda, Mariela Carvalho, Romulo Gomes, Sarita Bastos.

Quando iniciou a pesquisa e quantas pessoas participaram do levantamento?
Francisco Gonçalves – A pesquisa tinha como objetivo reunir depoimento dos produtores do programa, reconstituir o roteiro e localizar possíveis registros sonoros. Entre 2005 e 2006, a equipe de pesquisa entrevistou José de Jesus Brito (Sérgio Brito), Manoel José Pereira dos santos (Pereirinha), José de Ribamar Elvas Ribeiro (Parafuso), José Faustinho dos Santos Alves (J. Alves) e José Marinho Raiol Filho (Rayol Filho). Na época, embora tivéssemos tentando, não conseguimos localizar Fernando Melo e Fernando Costa. José Branco não aceitou conceder entrevista sobre o assunto. Além disso, reconstituímos o roteiro a partir de uma gravação do programa cedida por Parafuso. Dessas atividades de pesquisa, participaram, além de mim, Aline Cristina Ribeiro Alves, Andréia de Lima Silva, Elen Barbosa Mateus, Kamila de Mesquita Campos, Karla Maria Silva de Miranda, Mariela Costa Carvalho, Romulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa, todos (na época) alunos do Curso de Comunicação Social da UFMA.

Como foi organizado o trabalho? Em quais áreas a pesquisa incidiu?
Focamos em duas áreas: a versão dos produtores e interpretes e a reconstituição do roteiro do programa, já que tratava-se de organizar fontes de pesquisa sobre o programa veiculado pela Rádio Difusora em 1971 e, deste momento, inserir esse acontecimento nos estudos de comunicação no Brasil e no exterior. Embora a Guerra dos Mundos seja um tema recorrente nos estudos de rádio e jornalismo, apenas recentemente o episódio de São Luís começou a ser objeto de discussão nos fóruns científicos do país. Por exemplo, apenas em 2003 foi apresentado um artigo científico sobre o tema, no caso, trabalho do Prof. Ed Wilson no 1º Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, intitulado A Guerra dos Mundos em São Luís do Maranhão. Esse foi o primeiro artigo científico apresentado sobre o tema em um fórum de discussão da área de comunicação.

Entre os profissionais que participaram da produção, quais foram entrevistados e que funções cada um exerceu na montagem?
Todos os entrevistados participaram da produção do programa e/ou interpretação dos personagens, embora existam divergências sobre o papel desempenhado por cada um e o personagem que cada um chegou a interpretar. Sérgio Brito, Pereirinha e Parafuso, junto com Fernando Melo, participaram da produção do programa. Especificamente, Sérgio Brito, no roteiro; Pereirinha, nos efeitos especiais, na direção técnica; e Parafuso, na sonoplastia. Sérgio Brito interpretou o locutor da Rádio Repórter do Rio Janeiro (uma emissora fictícia), Pereirinha o controlador de vôo. Sobre o piloto de avião seguido por objeto desconhecido, o relato de Pereirinha diverge do de Sérgio Brito. Sérgio Brito afirma que interpretou esse personagem e Pereirinha atribui a interpretação a Fernando Melo. Sobre os demais entrevistados, J. Alves e Rayol Filho interpretaram a si mesmos. Outros personagens aparecem na história, como dono da Fazenda Santa Marta, interpretado de acordo com Pereirinha por Fernando Melo; o professor Leonardo Galvão e o cientista Mário Corteline, ambos interpretados por Reynaldo Faray. Não obstante as divergências sobre o papel de cada um, o programa A Guerra dos Mundos, como todo produto de mídia, é uma obra coletiva, resultado do esforço de todos.

Quais os cenários de São Luís no início da década de 1970?
Na passagem dos anos 60 para os anos 70, São Luís estava passando por mudanças políticas, urbanísticas, demográficas e midiáticas. De 1960 a 1970, de acordo com o IBGE, a cidade cresceu em mais de cem mil habitantes, passando para 265.486 moradores. Novas vias de acesso foram abertas, com as pontes sobre o Rio Anil, no Caratatiua e São Francisco. No começo da década de 70, a população maranhense ainda vivia o impacto da derrota de Renato Archer (PTB-PSD e vitória de José Sarney (PSP-UDN-PR). No campo das mídias, a televisão ganhava envergadura, por conta das mudanças técnicas, a expansão do consumo de produtos televisuais e aumento do número de telespectadores. Naquela década, a televisão deslocaria, na capital, o lugar social, econômico e político do rádio. Foi exatamente nos anos 70 que o Brasil veio a se constituir em uma sociedade midiática, sobretudo por conta do papel que a televisão viria a ocupar no sistema de comunicação, a partir da organização das redes nacionais. Mas, São Luís também era uma cidade povoada de assombrações, como a Carruagem de Ana Jansen, a serpente do Ribeirão e o Touro Encantado da Ilha dos Lençóis.

Em que aspectos o programa de São Luís mais se aproxima do original de Orson Welles?
De acordo com Sérgio Brito, o roteiro do programa da Difusora levou em consideração do livro de H.G. Wells, A Guerra dos Mundos, e uma sinopse do programa de Orson Welles, veiculado em 1938 pela CBS nos EUA, publicado em uma edição da revista Ele&Ela. Os dois roteiros possuem estrutura narrativa semelhante. Ambos utilizam os recursos do radiojornalismo para contar a famosa história de H.G. Wells. Mais também existem algumas diferenças importantes. Nos Estados Unidos, o programa foi veiculado em uma noite de domingo, em um horário destinado ao radioteatro. Em São Luís, o programa foi veiculado em uma manhã de sábado, ao longo da programação normal da emissora, sem nenhum aviso prévio que se tratava de obra de ficção. Nos Estados Unidos o programa foi interpretado por atores; em São Luís por respeitados e reconhecidos profissionais de rádio e jornalismo. Nos Estados Unidos o foco da invasão foi o território americano; em São Luís, a invasão se espalha pelo mundo e chega ao campo de Perizes, sendo este um momento chave na dramática narrativa da Difusora, para o qual foram fundamentais a música e os efeitos de som.

O que os produtores do programa pretendiam com a veiculação?
Sobre os objetivos dos produtores também existem visões diferentes. Para Sérgio Brito, por exemplo, o objetivo era demonstrar o valor do rádio em um momento que o panorama de comunicação passava por mudanças com o crescimento da audiência de televisão. Para Pereirinha, era uma brincadeira, feita para comemorar o aniversário da emissora. Eu diria que, de certo modo, os dois têm razão. Foi uma brincadeira no aniversário da emissora, mas uma brincadeira que se prestava a expor a importância do rádio, em um momento em que a televisão, institucionalmente falando, provocava uma reestruturação do papel social, econômico, político e cultural do rádio.

No começo da década de 70 como estavam posicionados o rádio e a televisão no cenário midiático de São Luís?
No começo da década de 70, cinco emissoras de rádio disputavam a atenção dos ouvintes na capital do Estado, no caso, Difusora, Timbira, Gurupi (hoje, Rádio São Luís), Educadora e Ribamar (hoje, Rádio Capital). Com a chegada do vídeo-tape em 1966, a televisão superou a sua primeira fase, caracterizada por uma produção local, feita, sobretudo, por profissionais oriundos do rádio e teatro. Essa produção local foi gradativamente substituída por uma programação do sul país. Como observa Aldo Leite, em seu livro sobre o teatro, a criatividade e a improvisação cederam lugar à tecnologia.

Quais os aspectos relevantes na estética do programa que levaram à construção de um efeito de realidade?
Eu diria que o realismo foi fundamental para conferir valor de verdade à narrativa – o programa foi apresentado e interpretado por cronistas, locutores e repórteres respeitados e reconhecidos pelo público; a história de H. G. Wells foi recontextualizada, ou seja, São Luís passou a ser um dos palcos da fictícia invasão; o uso da vinheta de notícias extraordinárias da Rádio Difusora marcou o ritmo do programa; e a trilha sonora, que articulou as músicas mais pedidas da semana, com música clássica (utilizada quando morria alguém importante) e músicas da trilha sonora da novela O homem que deve morrer e do filme 2001: uma odisséia no espaço.

Houve pânico em São Luís durante a veiculação do programa?
Os depoimentos dos produtores e interpretes do programa revelam um aspecto bastante interessante do programa: as pessoas acreditaram mesmo que a Terra estava sendo invadida por naves extraterrestres e que os marcianos estavam chegando em São Luís. Muitos ouvintes interpretaram essa invasão como o próprio anúncio do fim do mundo. Tendo chegado o fim do mundo, a preocupação das pessoas era ir para casa morrer com os seus. Nos últimos dias, temos ouvido muitos relatos que confirmam essa versão. Ao divulgar o lançamento do livro, várias pessoas nos procuram com histórias semelhantes àquelas narradas por Sérgio Brito, Pereirinha, Parafuso, J. Alves e Rayol Filho.

Como foi a repressão à Rádio Difusora após a exibição do programa?
Tropa do exército invadiu e ocupou as dependências da emissora. E em um ato completamente arbitrário, o comandante determinou o fechamento da emissora e da televisão, que deveria entrar no ar a partir das 17h. Nos anos seguintes, a Difusora responderia processo no DENTEL. A situação só não foi pior porque Sérgio Brito, Pereirinha e Parafuso introduziram em dois espaços da gravação uma pequena nota dizendo que se tratava de programa de ficção.

Qual a descoberta mais relevante da pesquisa?
O aspecto mais relevante da pesquisa é que, pela primeira vez, se conseguiu reunir importantes fontes de pesquisa sobre esse programa, agora publicadas em livro. Ou seja, reunimos os depoimentos dos produtores e interpretes do programa, reconstituímos o roteiro e localizamos cópia da gravação com Parafuso e Pereirinha. O livro Outubro de 71: memórias fantásticas da Guerra dos Mundos apresenta esses depoimentos e o roteiro e o áudio do programa. Cada participante do programa apresenta a sua própria versão daquele acontecimento. As convergências e divergências nas narrativas fazem parte da própria dinâmica metodológica adotada na pesquisa, no caso a história oral. Nós estamos convencidos que ao lançar o livro outras histórias e outras lembranças virão a público, do mesmo modo, que as diferentes versões provocarão bons debates sobre o papel dos produtores e interpretes e sobre o próprio programa. Deste modo, teremos condições de ampliar as informações sobre esse importante evento.
>> BEQUIMÃO AGORA


NA CALADA DA NOITE

sexta-feira | 13 | janeiro | 2012

Medo, a emoção mais antiga so ser humano inspira o horror na literatura, no cinema e na TV

Medo de olhar debaixo da cama e pela fresta do guarda-roupa, medo do escuro. Em seu clássico livro, O horror sobrenatural em literatura, o escritor norte-americano H. P. Lovecraft (1890-1937) afirma que a emoção mais antiga da humanidade é o medo e o mais forte tipo é o do desconhecido. “Embora o medo seja universal, suas causas variam muito no tempo e no espaço. Cada sociedade tem os seus medos próprios, e a boa literatura de horror é justamente aquela que identifica esses pavores, trazendo-os de modo realista ou alegórico para o terreno da ficção”, diz Júlio França, professor de Teoria da Literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Não é possível determinar, com certeza, em que momento da história social apareceram os relatos relacionados ao horror. Contudo, a tradição literária reconhece o romantismo gótico do final do século 18 como o marco inicial, na era moderna, de uma literatura que tem na produção e na tematização do medo seu traço essencial.

“A ficção gótica é a literatura do pesadelo. Entre suas manifestações, encontramos as trilhas de fuga representadas pelos sonhos produzidos por seus autores, os quais desenvolveriam, sem saber, a potencialidade de um modelo estético que explora os medos mais profundos do ser humano”, diz Danielle da Costa, professora de Literatura e autora de A orquídea de sangue: o dandismo de Lestat de Liouncourt na obra de Anne Rice, dissertação apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2004.

O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, é o primeiro romance gótico e conta a clássica história de um castelo amaldiçoado. A obra virou referência para Edgard Allan Poe, Bram Stoker, Ann Radcliffe, Clara Reeve, Charles Maturin, Mary Shelley, Daphne Du Maurier e tantos outros. A história em questão fala de Manfredo, príncipe do condado de Otranto, que sofre com uma maldição de gerações de sua família. Ela tem início no dia do casamento de seu filho, que é assassinado. É assim que começa a saga do protagonista para solucionar o mistério.

Ainda no século 18, o poeta alemão Heinrich August Ossenfelder traz para a literatura a temática de vampiro ao escrever Der Vampir. O poema trata da jovem Cristina, que recusa um pretendente a conselho de sua mãe por acreditar que ele vinha de uma região assolada por vampiros. Inconformado com a decisão da moça, o homem assume impulsos de vingança com a intenção de invadir o leito da donzela.

Outro autor de extrema influência na literatura de horror é Matthew Gregory Lewis, que detalhava cenas sangrentas e sádicas, além de criar uma atmosfera mais densa e sombria que seus antecessores. Sua obra mais popular é The Monk (1796). Situado em um convento sinistro em Madri, é um conto cheio de ambição, assassinato, incesto e centra-se na luta de um monge para manter seus votos em face da tentação e da obsessão sexual.

Mas o mais cultuado autor de horror de todos os tempos é o também norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Poeta, crítico e, sobretudo, contista, ele dominava como poucos as técnicas de narrativa e concebia a obra como um artefato produtor de emoções. “Talvez o fato de ter sido tão atento aos efeitos da literatura sobre o leitor ajude a explicar seu sucesso, já que o gênero se define, fundamentalmente, pela produção de um efeito de recepção: o medo”, afirma Júlio França.

Em seu ensaio The Philosophy of Composition, de 1846, o escritor descreve os princípios de sua criação: “Tendo escolhido um assunto novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou com o tom – com os incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom – depois de procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção do efeito.”

Para França, Anne Rice, Stephen King e Clive Barker são autores da atualidade que conseguem, como Poe, captar e reproduzir as tensões, as angústias e os medos do mundo contemporâneo. “Arrisco dizer que obras como Entrevista com o vampiro(Rice) (esgotado)O iluminadoCarrie, a estranha (King) e Livros de sangue (Barker, esgotado) farão parte, se é que já não fazem, do cânone da literatura de horror ocidental”, diz o professor da UERJ.

TERROR OU HORROR?

Uma das dúvidas mais usuais entre os leitores e estudiosos do gênero é exatamente sobre a diferença, o porquê de alguns títulos serem rotulados de horror e outros de terror. Escritores como Ann Radcliffe e Stephen King consideram o terror uma emoção mais psicológica do que o horror, que seria mais sensorial. “Estar aterrorizado” dependeria, portanto, de um trabalho da imaginação, que especularia sobre a possibilidade de algo terrível acontecer.

Já, “estar horrorizado” seria o resultado da concretização da ameaça sendo normalmente acompanhado por uma sensação de repulsa diante da cena explícita. Mas, tanto explícito como imaginário, por que alguém procuraria, na ficção, emoções que, na vida real, são desagradáveis? Para França, buscamos o efeito catártico, o alívio após experimentarmos emoções terríveis vividas por personagens com os quais nos identificamos. “Embora tais emoções sejam por nós vivenciadas intensamente, elas não são uma ameaça real ao nosso ser. Elas produzem o efeito terapêutico de purgar nossas próprias paixões”, explica.

O HORROR NAS MÍDIAS

O horror espalhou-se pelas mídias a partir do século 19, quando as grandes obras foram rapidamente adaptadas para o teatro. O cinema, desde suas origens, valeu-se do gênero em filmes clássicos como O Golem (1920), Nosferatu (1922) e O fantasma da ópera (esgotado) (1925). Até hoje, Hollywood produz filmes de horror que são sucesso de bilheteria.

Esse tipo de história também é tema de Thriller, o mais famoso vídeoclipe de todos os tempos. Lançado por Michael Jacson em 1982, o vídeo entrou para o acervo da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, por ser considerado “culturalmente significativo”.

No Brasil, programas como Incrível! Fantástico! Extraordinário!, apresentado por Almirante, na Rádio Tupi, entre 1947 e 1958, e Além, Muito Além do Além, de 1967, na TV Bandeirantes, com Zé do Caixão – personagem criado por José Mojica Marins –, exploraram o medo e o sobrenatural. No papel coveiro do cruel e sádico, Marins também esteve no cinema em À meia-noite levarei sua alma (esgotado). Nos quadrinhos, revistas como Calafrio e Kripta tiveram grande sucesso comercial.

Uma nova geração de escritores brasileiros adotou o horror como tema de seus livros. Autores como Giulia Moon, André Vianco, Santiago Nazarian, Martha Argel, Roberto Sousa Causo, Rosana Rios e Helena Gomes, entre outros, começaram a escrever em sites e blogs, sendo considerados hoje em dia os principais responsáveis pela produção do gênero no país. “Muitos de nós começamos nas redes sociais e hoje temos livros publicados”, diz Helena Gomes, co-autora de Sangue de lobo, ambientado no interior de Minas Gerais, que tem um lobisomem como protagonista.

Helena diz que não sabe as razão, mas havia um preconceito de ler história de horror que se passassem no Brasil. “Graças a Deus, isso está mudando, nosso território é muito propício para uma história de medo.”
>> REVISTA CULTURA – por Gérson Trajano


MUNDO POVOADO POR SERES FANTÁSTICOS DÃO FÔLEGO A JOVENS ESCRITORES

quinta-feira | 12 | janeiro | 2012

O paulistano André Vianco publicou 14 obras, com 700 mil cópias vendidas e faz projeto piloto para série de tevê.

A popularização da literatura de fantasia levou alguns escritores brasileiros a trilharem os caminhos desse gênero. O mundo habitado por guerreiros, vampiros, lobisomens, demônios e anjos está ganhando cada vez mais espaço entre as publicações nacionais e diminuindo a dependência da criatividade estrangeira para satisfazer leitores adeptos ao estilo.

A fantasia nacional soma algumas dezenas de títulos, como as séries vampirescas de André Vianco; A batalha do Apocalipse, de Eduardo Spohr; e a trilogia Dragões de éter, de Raphael Draccon. O fenômeno editorial ocorreu no momento em que o mundo vislumbrava a magia de Harry Potter e o cinema resgatava a saga de O senhor dos anéis. Mas as inspirações dos escritores daqui foram várias, passando por J. R. R. Tolkien, J. K. Rowling, C. S. Lewis e chegando a nomes do passado, como o criador do Conde Drácula, Bram Stoker.

Um dos precursores e disseminadores dessa tendência no país foi o paulistano André Vianco, 35 anos. Em 2000, ele lançou Os sete, livro que conta a história de sete vampiros que desembarcam no litoral brasileiro, e ainda hoje figura entre os mais vendidos. “A internet inverteu o fluxo de como as editoras decidiam o que publicar. A indústria do entretenimento passou a ver que os leitores liam também na internet. Então, começaram a entrar os autores nacionais de fantasia e terror. Perceberam que havia bons escritores aqui e começaram a ver que os leitores queriam ler esses autores, sim. Porque, mesmo sem existir na loja, o escritor tem o seu blog, o seu público, as editoras vão atrás deles também. Hoje, com as redes sociais, existe uma fidelização do público leitor, o que está fortalecendo esse nicho que até então era ignorado”, analisa.

Dono de um recorde de 700 mil cópias vendidas, com 14 livros publicados e um em produção, André Vianco ensaia os primeiros passos como diretor de uma série de tevê baseada na trilogia O turno da noite. A produção é independente, e conta apenas com o episódio piloto até o momento. “São passos tímidos ainda, mas os leitores adoram. É aquela coisa bem brasileira, bem autoral. Eu escrevi o roteiro, dirigi e abri minha produtora”, acentua.

Receita para o sucesso não existe, mas Vianco sempre dá dicas nas palestras que faz pelo Brasil a jovens que pretendem tornar-se escritores: “É gostar de escrever e sobretudo gostar de ler. Ser perseverante, porque o mercado não é fácil”.

Medieval e tecnológico
O estilo do carioca Raphael Draccon, 30 anos, é diferente, sem seres sanguinários. Autor da saga Dragões de éter, com mais de 50 mil exemplares vendidos, Draccon lançou-se no projeto de escrever um livro para ser como Bruce Lee. De tanto assistir a Operação Dragão na infância, ele prometeu para si que também seria escritor e faixa-preta, e trabalharia com cinema. “Precisei de 20 anos para cumprir toda a promessa”, brinca.

A trilogia Dragões de éter é uma releitura de vários contos de fada compartilhando a mesma trama, com uma linguagem para adolescentes, e não para crianças. Contém ação e magia na mesma medida, em um cenário medieval e tecnológico. Ninguém escapa. Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, a Branca de Neve e os sete anões, estão todos lá, com uma dose farta de cultura pop, vinda principalmente do rock.

A trilogia ganhou forma em meio a uma rotina agitada. Raphael estudava cinema de manhã, dormia à tarde, dava aulas à noite e escrevia de madrugada. O esforço rendeu, à época, um original de 400 páginas, entregues nas mãos do editor. A edição publicada tem cerca de 1.400. “Eu havia produzido uma capa simbólica, os personagens impressos em papel especial. A ideia era resgatar o que a minha geração sentia ao assistir a A caverna do dragão. Uma obra envolvendo um cenário sombrio, suavizado por uma visão juvenil”, explica Draccon.

Quando publicou os livros pela primeira vez, cinco anos atrás, a realidade era outra. “Hoje, o mercado é um pouco mais aberto a novos autores. Há alguns anos, aí podemos utilizar autores como Vianco e Spohr como exemplo, escritores nacionais de fantasia não eram best-sellers ,e nem editoras nem leitores confiavam tanto neles como atualmente”, resume.

Fada Mel
Mesmo dentro do gênero fantasia, o público é bastante diversificado. Distante das batalhas épicas e confrontos violentos, o livro A fada, de Carolina Munhoz, paulista de 22 anos, vencedora na categoria literatura do Prêmio Jovem Brasileiro 2011, é uma história de esperança diante de dificuldades.

A inspiração que Harry Potter deu a Carolina foi tanta que até a cidade onde a trama se desenrola é a mesma onde o bruxo morava: Londres. “Eu sempre fui apaixonada pelo local, pela história do Rei Arthur. Harry Potter intensificou e resolvi usar Londres como cenário. Antes de relançar o livro por uma outra editora, passei um mês lá e usei essa experiência para colocar mais detalhes na obra”, comenta Carolina.

As aventuras da personagem principal, a fada Mel, surgiram na imaginação dela aos 16 anos. Quatro anos depois, a história foi publicada e reeditada. “Eu nunca tive uma conexão muito grande com fadas, mas esse livro veio para mim em um sonho e no outro dia eu comecei a escrever.”

Já Bruna Torres não é escritora, mas é fã da obra de André Vianco. Aos 6 anos, leu Chapeuzinho Vermelho e, alguns anos depois, As aventuras de Robson Crusoé. Conheceu a obra de Vianco por meio de um parente. “Meu primo tinha uns 12 anos e lia a série que começou com Os sete. Ele me falava tanto dela que me interessei e acabei até presenteando amigos com livros do André. Até o meu namorado, que não lia nada, tomou gosto pela leitura. Hoje, conheço o André Vianco pessoalmente e sempre o encontro quando ele vem a Brasília”, completa.

Leitora dedicada, a brasiliense de 25 anos põe Vianco no patamar dos melhores escritores brasileiros. “São livros de excelente qualidade, que merecem leitura. Indico para todas as idades. São cheios de detalhes, personagens e histórias fascinantes”, descreve.
>> CORREIO BRAZILIENSE – da Redação


HEROÍNAS DA LITERATURA FANTÁSTICA

quarta-feira | 11 | janeiro | 2012

As heroínas são personagens que, envolvidas em confusões e mesmo que precisem de uma ajudinha de amigos ou mesmo de um herói, conseguem agir sozinhas. Porém a característica mais marcante de uma heroína, que a difere das mocinhas de histórias, é que elas não são conformistas. Enquanto as mocinhas, geralmente indefesas, sempre esperando pelos “príncipes encantados” para salvá-las, as heroínas vão brigar pelo direito de pensar por elas mesmas, certas ou erradas, com unhas e dentes.

Kara dos livros Alma e Sangue Imagem: Websérie Alma e Sangue

Na literatura fantástica é onde mais se encontra heroínas. Porque na literatura mundial, infelizmente, o número de mocinhas ainda é muito grande, o que mostra o quanto a sociedade literária ainda é machista. Porque as mocinhas são o verdadeiro exemplo da figura feminina idealizada por uma cultura patriarcal, onde o homem é o forte e corajoso, enquanto a mulher é a bela “donzela”, cobiçada por todos, que precisa ser salva pelo melhor entre todos os homens.

Já uma heroína é uma personagem feminina de temperamento forte, com defeitos e qualidades que a coloca em igualdade com um herói. Algumas chegam a condição de anti-heroínas de tão do contra que são. Porém as heroínas da literatura são mais realistas e diferem muito da maioria vista nos quadrinhos, por exemplo, as quais geralmente usam roupas sexy (e muitas vezes ridículas) só para agradar o público masculino, que ainda é maioria em publicações do tipo.

Conheci em minhas leituras, desde que iniciei o Projeto Literatura Nas Ondas Do Rádio, algumas heroínas e anti-heroínas bem legais. Tanto na literatura estrangeira como na nacional.

A tendência mundial atual são as Heroínas Adolescentes, entre as quais se destacaram, e/ou caíram no gosto do público em geral, a Hermione de Harry Potter, a Bella da saga Crepúsculo e Claire de Os Vampiros de Morganville. Curiosamente no Brasil, a tendência entre os autores brasileiros são Heroínas Adultas, mas encontrei algumas adolescentes bem interessantes como a Kaori, criação de Giulia Moon(Kaori – Perfume de vampira e Kaori 2 – Coração de Vampira), e Kôra, criação de Ana Flávia Abreu (Kôra – O Pressentimento do Dragão e Kôra e a Masmorra de Atro).

Na literatura fantástica mundial, poucas foram as Heroínas Adultas que achei até agora. Há muitas interessantes dentro do mundo dos quadrinhos, mas pouquíssimas são as que encontrei na literatura, as quais fossem cativantes como a detetive particular Vicki Nelson da série literária Blood Book de Tanya Huff, que, infelizmente, ainda não foi traduzido para o português (pelo que eu saiba). Porém alguns fãs de séries de TV fantásticas e/ou vampirescas, provavelmente, a conhecem, pois o livro foi inspiração para a série Blood Ties.

No entanto, os autores brasileiros conseguiram suprir a falta de tais personagens brilhantemente. Porque se falta heroínas lá fora, ou é apenas o mercado editorial por aqui, que ignora o fato dos brasileiros adultos curtirem LitFan (até mais que o público infanto-juvenil), o fato é que no meio nacional há várias e cada uma mais interessante que a outra.

Entre as personagens femininas com características de heroína ou anti-heroína da literatura nacional fantástica, eu tive o prazer de conhecer algumas que hoje estão na lista das minhas favoritas, como é o caso da Clara de Martha Argel (Relações de Sangue e Amores Perigosos), Kara de Nazarethe Fonseca (Alma e Sangue) e Jessi de Vivianne Fair (A Caçadora). As três personagens fazem parte de histórias de vampiros, mas há outras bem interessantes, que pertencem a outros universos fantásticos, como é o caso da Mestra Anna do livro O Castelo das Águias de Ana Lúcia Merege.

Também encontrei várias heroínas, entre adultas e adolescentes, em contos nacionais, como as personagens:
– Maya dos contos de Giulia Moon (Coletâneas Vampiros no EspelhoA Dama-Morcega e Luar de Vampiros).
– Sophie de Gabriel Arruda Burani, Barbara da Celly Borges, Berta da Nazarethe Fonseca e Luísa de Louise Duarte (Antologia Sociedade das Sombras da Editora Estronho).
– Anelisa da Cristina Rodriguez, Carolina da Adriana Araújo, Lili da Nazarethe Fonseca e Nix da Giulia Moon (Livro 1 da coleção Amores Proibidos da Editora Draco, Meu Amor é um Vampiro).

Essas personagens são apenas alguns exemplos, entre aquelas que eu mais gostei, ou que me chamaram atenção por alguma característica marcante, ao ponto de desejar continuações de suas histórias. Há várias outras personagens interessantes na LitFanBR, sem contar os livros que ainda estão na minha lista de leitura (que atualmente é enorme).Então se gosta de uma boa histórias com heroínas, tem para todos os gostos. E para quem não aquenta mais os inúmeros reality show e programas sensacionalistas das TVs brasileiras, que se repetem irritantemente a cada ano, eu recomendo a leitura de livros fantásticos. Vai gastar melhor seu tempo e pode se divertir muito mais… Assim, quem sabe, com um audiência baixa, as redes de TVs no Brasil comecem a investir em programação de qualidade e boas histórias para seus roteiros.
>> CONTOS SOBRENATURAIS – por Anny Lucard

TUPI OR NOT TUPI. ESTA NÃO É A QUESTÃO

quarta-feira | 11 | janeiro | 2012

Cacique Raoni, líder da tribo dos Kayapó.

Recentemente voltou a cena o Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, de Ivan Carlos Regina, pela mão de Tibor Moritz, que levantou a bola, e deixou o pessoal fazer algumas embaixadas. Porém a bola caiu no chão e pingou, pingou e Bráulio Tavares deu outro chute levantando um novamente a bola, que nos pés de Roberto Causo e do próprio Moritz voltou a pingar no meio do fandom.

Eu estou vendo a bola vir em minha direção e resolvi arriscar um chute ou uma cabeçada e não espero atingir o gol, pois péssimo jogador de futebol, nem sei onde ele está. Aliás, parece que ainda ninguém sabe, mas o importante é que a bola continue no ar a espera de que alguém saiba onde está o gol ou construa um.

Para iniciar a minha reflexão sobre o assunto antes de colocar a bola novamente em campo partiu dos textos já citados, dos Manifesto da Poesia Pau Brasil e Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, do Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, de minhas leituras de FC & F e outros gêneros de todos os cantos do mundo e da Opera Madame Butterfly sob a ótica de Katsuhiro Otomo, no curta Magnetic Rose presente do DVD Memories.

Alguém poderia estar perguntando, por que Madame Butterfly? Afinal não estamos falando de literatura brasileira de Ficção Científica?

Eu pergunto: quando pensa em madame Butterfly, qual o primeiro país que aflora a mente? Japão!  Só que ela é uma opera italiana (escrita por Puccini) que se apropria de alguns elementos culturais japoneses e de um momento histórico, onde ocorria justamente a dominação econômica e cultural americana nas terras nipônicas.

E o que fez Katsuhiro Otomo? Criou uma história onde uma nave especial com uma tripulação multinacional (não há um japonês sequer) segue um sinal de SOS que é justamente uma ária de Madame Butterfly. O destino é um grupo de asteróides com um perigoso campo magnético, Sargasso, nome de um mar onde na ficção é palco de naufrágios misteriosos.

Mesmo sem ver o filme, só por esta sinopse percebe-se que o local é uma armadilha. A atração magnética, a atração física por uma mulher, a atração por uma cultura diferente, a busca do lucro fácil e a ilusão de que se pode viver através das memórias compõe o quadro dramático do curta.

Apesar de todas as referencias não serem japonesas, sentimos que estamos diante de uma obra genuinamente japonesa. Por quê? Talvez pela forma? O tipo de narrativa? Ou o aprendizado de mais de um século que tivemos de ver Madame Butterfly como uma referência ao Japão?

Já em o Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto coloca um personagem patético que tenta sozinho salvar o país através de três projetos: um linguístico, um econômico e um político.

Nos interessa o linguístico, já que estamos envolvidos no uso da linguagem como forma de expressão. Quaresma é menosprezado primeiro por querer estudar violão, depois por estudar sem ter formação acadêmica e, por fim querer adotar uma visão nacionalista extrema, ao propor o uso do tupi como língua oficial.

Este é o perigo que temos que evitar. Até onde deve ir nossa busca do nacionalismo? Enfiar um índio numa história de FC fará meu texto ser mais brasileiro?

Eu particularmente penso que somos estrangeiros nesta terra. Nossas origens são européias e se queremos colocar elementos indígenas em nossas histórias temos que fazer um mergulho em suas tradições e crenças, criar uma boa história (um bom exemplo é o herói Tajarê, de Roberto Causo) e… lidar com uma possível rejeição do publico leitor.

Agora, vamos ao texto base, o Manifesto Antropofágico de Ficção Científica Brasileira:

“Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas.

A ficção científica brasileira não existe.

A cópia do modelo estrangeiro cria crianças de olhos arregalados, velhinhos tarados por livros, escritores sem leitores, homens neuróticos, literaturas escapistas, absurdos livros que se resumem as capas e pobreza mental, colônias intelectuais, que procuram, num grotesco imitar, recriar o modus vivendi dos paises tecnologicamente desenvolvidos.”

O que seria este deglutir? Me vem a imagem de sandálias de dedo feitas a partir de garrafas pet. O Cacique Raoni de óculos e beiço de botocudo. Ou o Visconde de Sabugosa, com um laboratório de faz-de-conta. Alias Monteiro Lobato, apesar de não ter aderido ao movimento, é mestre nisto: seus livros infantis têm Saci e Peter Pan, Cuca e Gato Felix, onça e Tom Mix (caubói do cinema mudo). O sítio não vai ao universo, o universo vem ao sítio.

Me vem novamente a imagem de Madame Butterfly, mastigada e cuspida por Katsuhiro Otomo em forma de destroços.

Temos celulares de ultima geração, mas eles nos são roubados nos ônibus apertados. O saci fuma uma pedra de crack em seu cachimbo, acendendo-a com um isqueiro Zipo. A pesquisa é interrompida porque a verba foi desviada pra fazer um jardim na casa do ministro. É esta realidade que não é retratada, segundo Ivan Carlos Regina.

Por fim o próprio texto de Oswald de Andrade nos dá um tema pra uma boa obra de ficção especulativa, se alguém se dispuser a escrevê-la:

“Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.”

Infelizmente o que restou dos Caraíbas está prestes a ser inundado pela usina de Belo Monte.
>> BLOG DO PAI NERD – por Alvaro Domingues


“FANDEMÔNIO nº 1”: PARA DEGLUTIR O FUTURO

terça-feira | 10 | janeiro | 2012

Nos dolorosos estertores finais de 2011, o escritor e blogueiro Tibor Moricz, autor do romance O Peregrino (Draco, 2011), resolveu balançar a canoa da comunidade de fãs e autores de ficção científica – conhecida como fandom – com dois textos provocadores. Neles, lamenta a falta de discussões e de polêmicas nesta altura do ano, e pergunta: “Só a antropofagia nos unirá?”

A pergunta remete diretamente ao “Movimento Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”, lançado em 1988 pelo escritor paulista Ivan Carlos Regina nas páginas do fanzine do Clube de Leitores de Ficção Científica, o Somnium. Moricz já havia levantado a mesma peteca antes, quando divulgou no seu É Só Outro Blogue o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”, de Regina, e o entrevistou.
Na década de 1990, esse movimento, inspirado numa das principais tendências do Modernismo brasileiro, dividiu opiniões, causou polêmica, produziu declarações e ensaios publicados em fanzines, e, com erros e acertos, constituiu-se na questão literáriacaracterística da Segunda Onda da FC Brasileira (de 1982 ao presente). Além de Regina, se declararam simpáticos ao movimento Cesar Silva, Fábio Fernandes, Marcello Simão Branco, Roberto Schima e eu mesmo.

Hoje sabemos que a discussão de como ou por que trazer uma perspectiva brasileira ou terceiro-mundista à ficção científica já era discutida antes, durante a Primeira Onda (1958-1972), como atestam as perguntas que o escritor Walter Martins (1932-2010) dirigiu aos participantes internacionais do Simpósio de FC, o histórico evento realizado em 1969 no Rio de Janeiro.

O Movimento Antropofágico da FCB encerrou-se por volta de 1995, depois de Regina compreender que seu poder de mobilização e de debate havia alcançado seus limites. Mas é interessante que agora, quando se apresenta uma Terceira Onda de escritores de FC no Brasil, a discussão das idéias do movimento retorne com a intensidade que Moricz conseguiu provocar no seu blog. Parece que aqueles limites ainda não tinham sido atingidos.

O retorno da discussão vem no rastro de declarações muito recentes que o respeitado escritor e antologista Braulio Tavares fez à imprensa, por ocasião do lançamento da sua antologia Palavras do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica (Casa da Palavra, 2011). Para o jornal O Globo, ele fez esta declaração: “Tem muita gente lendo e gostando do gênero, e isso é ótimo. Mas há um cordão umbilical que precisa ser partido de uma vez por todas. O Brasil precisa se descolar dos Estados Unidos. Precisa trazer para a ficção científica o que os modernistas fizeram em 1922.”

A afirmativa se aproxima muito da proposta de Regina, e na discussão do É só Outro Blogue, Tavares fez novo esclarecimento: “Na entrevista ao Globo (por telefone), eu disse à jornalista que essa atitude antropofágica vem, pelo menos, desde que Ivan Carlos Regina publicou nos anos 1980 o ‘Manifesto Antropofágico da FC Brasileira’. Esta informação não apareceu na matéria final, o que lamento.” Já em matéria de 3 de janeiro de 2012, escrita por Luiz Zanin Oricchio para O Estado de São Paulo, tem-se a afirmativa: “Não por acaso, um autor como Ivan Carlos Regina publicou, em 1988, seu Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira. Inspirado nos modernistas de 1922, Ivan entende ser necessária a deglutição radical dos nutrientes estrangeiros para a produção da proteína nacional.”

Braulio Tavares é a fonte desse comentário, como se vê pelacrônica que ele fez para o Jornal da Paraíba, em 23 de dezembro de 2011, na qual afirma que “O manifesto de [Ivan Carlos Regina] critica os autores brasileiros que preferem imitar o modelo norte-americano de FC, repetir os mesmos temas, os mesmos clichês, a mesma linguagem – porque, vamos e venhamos, é muito mais fácil fazer ‘fanfic’ do que literatura. (A ‘fanfic’, a ficção produzida por fãs, é quando os leitores de Harry Potter, Star Trek, etc. escrevem suas próprias histórias utilizando esses personagens e contextos. Não tem propósito criativo estrutural; apenas o prazer de produzir variantes das obras originais.)” Nisso, ele vai ao encontro da condenação de Cesar Silva, um dos editores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, de que boa parte dos autores brasileiros de FC são apenas fãs que se contentam em firmar sua adesão ao gênero, sem o propósito de se expressarem ou de conduzi-lo a novas direções. Para Tavares, o lado crítico do movimento “permanece tão atual quanto em 1988”. “Deglutir, devorar, antropofagizar”, afirma, “implica sempre em destruir, ‘quebrar’ aquele material em seus elementos constitutivos, usá-lo como eventual banco de dados para produzir uma literatura que não venha do impulso de imitar, mas de dizer verdades pessoais. Literatura é a verdade pessoal de cada um, e para essa verdade emergir precisa desligar esse piloto-automático que gera a fanfic e a imitação.”

A conclusão de Tavares marca um posicionamento dele que não havia sido expresso durante os primeiros anos do movimento. Sua primeira reação foi relutante e cautelosa quanto a qualquer coloração nacionalista ou prescritiva que o movimento pudesse ter. Para o meu fanzine Papêra Uirandê, ele escreveu que o mais importante para o desenvolvimento da FC brasileira era a vantagem implícita que teríamos pela localização cultural do país, que nos permitiria absorver influências múltiplas – de dentro e de fora da FC anglo-americana, de dentro e de fora da própria literatura brasileira como um todo. Não é uma declaração conflitante com a antropofagia cultural, mas também não foi adesão clara às idéias de Regina. A crônica do Jornal da Paraíba e suas novas declarações parecem bem mais próximas dessa, talvez porque a distância temporal clarifica perspectivas – ou porque o momento atual da nossa FC justifique ainda mais um retorno desse debate.

E com certeza, o debate voltou. Os comentários à breve provocação de Moricz somaram setenta manifestações (no momento em que escrevo este texto). Mesmo excluindo respostas perfunctórias e ecos de comentários anteriores, é mais do que tudo o que foi discutido por escrito, entre 1988 e 1995.

O que esses comentários expressam acabou sendo, não obstante, muito próximo das polarizações e posicionamentos apressados daquele primeiro debate em torno do movimento. São imediatamente lançados apelos contra “patrulhas”, “ufanismo extremo”, “xenofobia”, “extremismo”, “postura brasilianista” – e, fora desse contexto em particular, contra o emprego de “estereótipos culturais”.

Além da advertência, há e houve argumentos opositivos, do tipo “regional vs. universal”, hoje transmutados na evocação do globalismo como tendência inescapável, que poria de lado qualquer projeto de se apresentar a “experiência brasileira” (expressão quase universalmente ausente do debate literário) como singular ou significativa, ou de se explorar criticamente a nossa realidade.

O que é “regional”, o que é “universal”? Muitas vezes, o que se diz é que a ficção seria mais universal se carecer de índices particulares. Se abrir mão do detalhe específico, se for vaga em relação a de onde,de como e para quem o autor se dirige. A despeito de qualquer apelo que o minimalismo possa ter, é difícil acreditar que uma literatura possa ser mais, por meio da insistência em ser menos. Leon Tolstoi recomendou: “Canta a tua aldeia e serás universal.” E para o crítico francês Antoine Compagnon (in O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum, 1998), citando o ensaísta Michel de Montagne, “Cada homem traz em si a forma completa da condição humana”. Muda a conjuntura em que a condição humana se expressa, mas atravessando o outro, experimentando a vida pelo ponto de vista dos personagens e do autor, se atinge o universal.

Na Terceira Onda, um dos elementos centrais da retórica que emerge da interação entre esses novos escritores parece ser a noção da identificação do autor e do conteúdo que ele produz, com um público leitor ideal. Esse público seria jovem, de classe média, maioria masculina e branca e com formação universitária, interessado em novidades tecnológicas e conhecedor da FC principalmente via televisão, cinema, quadrinhos e videogames. Resulta daí uma busca pelo universal a partir de um único particular, mas um particular que se apresenta como dominante. O risco maior da postura seria a extrapolação exclusiva de um só conjunto de coordenadas sócio-culturais que pertenceriam a essa geração de autores.

Risco porque a ficção científica é a literatura da mudança, do estranho, do inesperado e daquilo que hoje é apenas vislumbrado, mas que tem o potencial de alterar dramaticamente as nossas vidas. Como escreveu (na antologia Future on Fire; 1991), Orson Scott Card, um dos grandes escritores que a FC já produziu, “Dúzias, centenas, milhares de vezes [os leitores de FC] viveram o processo de apreensão de uma realidade surpreendentemente nova. Não importa o que o futuro seja, eles já conhecem o processo: reconhecer a contradição entre a visão familiar do modo como as coisas são, e a nova ordem; extrapolar das contradições um novo sistema de causa e efeito; reconstruir uma visão do modo como as coisas são que inclua e acomode as antigas contradições; inventar o seu próprio papel na nova ordem; agir de acordo com o seu novo papel e sua nova visão da realidade.”

Esse seria o efeito geral da ficção científica como gênero. Mas não significa que cada narrativa de FC o realize. O escritor tem de buscá-lo intencionalmente, deliberadamente construindo, a partir das suas habilidades e experiências individuais, sua visão de mudanças potenciais e de reações possíveis. Por que uma literatura com esse potencial visionário deveria se ater a um único conjunto de valores, em nome de uma estratégia de mercado? Não haveria nisso um amesquinhamento da literatura – e em termos sociais, uma falta de solidariedade para com aqueles que são diferentes?

Recentemente, a escritora mainstream Martha Medeiros declarou no Rascunho: O Jornal de Literatura do Brasil de dezembro de 2011: “A literatura derruba paredes… Acho que nos liberta da mediocridade, faz com que a gente transcenda. Porque a nossa vida é muito estreita, muito reduzida.” Por que a ficção científica deveria andar na contramão desse entendimento?

O próprio processo de globalização tem nuances que o fazem escapar da idéia de que um conjunto de valores irá colonizar todas as instâncias do planeta. O antropólogo argentino Néstor García Canclini adverte (in Diferentes, Desiguais e Desconectados: Mapas da Interculturalidade; 2004): “Dizer que a redução do cultural ao mercado e à sua globalização neoliberal condiciona todas as relações interculturais induz hoje a renovados estereótipos de universalização inconsciente.” E a seguir afirma: “Os lugares continuam a existir por continuar a existir alteridade no mundo”, e que “ler o mundo na chave das conexões não elimina as distâncias geradas pelas diferenças nem as fraturas e feridas da desigualdade”.

Também posso citar, numa indicação de Nelson de Oliveira, o sociólogo brasileiro especialista em globalização, Renato Ortiz, que opina: “A globalização é uma totalidade que nos envolve a todos, ela cria uma nova situação. Sua abrangência é global, mas isso não significa que o mundo seja homogêneo. A situação de globalização redefine o nacional e o local, mas não os elimina. […] A discussão da diversidade só faz sentido num mundo que se globalizou. Valoriza-se a diferença por que estamos todos na mesma situação.” Mas com a ressalva: “Fica evidente hoje que o processo de globalização constitui uma totalidade na qual as diferenças se manifestam. O mundo é um todo, mas nada tem de homogêneo. Tampouco ele é plural, como diziam os pós-modernos; as diferenças encontram-se hierarquizadas e constituem relações de poder bem determinadas.”

Enfim, sobre os que criticam esforços de valorização local, ele diagnostica: “Os críticos, ao se afastarem do que eles consideram como provincianismo nacionalista, cultivam a ilusão de serem cosmopolitas, cidadãos do mundo. Diante da estreiteza da visão particular, afirma-se pretensamente um universalismo abstrato. No caso brasileiro, existe ainda a herança colonial, isto é, o fato de o país situar-se na periferia. […] A valorização do estrangeiro termina sendo um elemento de autoafirmação.”

Por sua vez, uma ficção científica consciente deveria abordar todas as faces da alteridade, as possibilidades de diferença em relação às estruturas dominantes ou hegemônicas. No debate em torno do Movimento Antropofágico da FCB, eu lancei uma metáfora para o que a nossa FC deveria propor: “Assim como o Brasil dos muitos biomas é detentor da maior biodiversidade do planeta, nossa literatura deveria refletir a mesma diversidade – a diversidade cultural do Brasil urbano e do rural, do Brasil que fabrica satélites artificiais e do que constrói casas de barro e sapé, do Brasil do Primeiro Mundo e do Paleolítico internado na selva” (in Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras; 2010 ). Nesse sentido, Canclini também observa, que, “Assim como cada vez mais tende a aceitar-se a necessidade da diversidade biológica como condição para garantir o desenvolvimento conjunto da humanidade, a diversidade cultural e o reconhecimento das minorias começam a ser vistos como requisitos para que a globalização seja menos injusta e mais inclusiva.”

Um dos grandes problemas do movimento foi dar seqüência às idéias do manifesto de Regina, aprofundando-as, fornecendo exemplos positivos e oferecendo recomendações diretas. Regina insistia que seu manifesto era texto literário, talvez temendo que ele se descaracterizasse se fossem adotados desdobramentos ensaísticos ou acadêmicos. Talvez temesse uma interpretação prescritiva das suaãs posições, ou apenas se sentisse embaraçado se fosse preciso apontar posturas ingênuas dos seus pares. É difícil, por exemplo, chamar de outra coisa a oposição automática entre “regional” e “universal”, já que ela ignora um sem-número de complexidades a que Canclini e Ortiz se referem.

O que existe além do horizonte retórico do movimento, e que o limitaram gravemente, são de fato expressões bastante difíceis de dirigir aos nossos pares: ingenuidade literária, colonização cultural, alienação, submissão ao mercado, derivação, subserviência intelectual. Muitas delas foram atiradas contra mim ao longo de minha carreira, e posso atestar que deixam cicatrizes. Atualmente, Cesar Silva é a única personalidade da área que empunha impunemente esses chicotes, porém mais para fustigar o fandompropriamente, do que a autores individuais.

Mas o Movimento Antropofágico teria sido de algum modo prescritivo ou dogmático, em sua curta existência? Talvez eu tenha sido (em minha correspondência, especialmente), na minha própria ingenuidade e insegurança, mas o movimento como um todo foi bastante aberto. Em termos formais e de uma recuperação da herança modernista brasileira, foi a corrente tupinipunk da FC brasileira que realizou o projeto de Ivan Carlos Regina – e o fez remetendo-se diretamente a essa herança, sem tomar conhecimento do seu manifesto. São obras formalmente mais complexas e experimentais, como o romance Santa Clara Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett, que Tavares cita como paradigma antropofágico.

Minha abordagem pessoal foi diferente (só estou me aproximando do tupinipunk agora), e encontrei meus próprios modelos, fora do movimento, do que seria interessante para a escrita de uma FC mais interessada da experiência brasileira – como histórias de Ivanir Calado e Gerson Lodi-Ribeiro. Em nenhum momento, porém, Ivan Carlos Regina veio me dizer que eu me afastava dos seus ideais, ou que meu caminho era equivocado.

Num sentido mais extremo, seria possível dizer que a afirmação dos ideais do movimento significariam uma ameaça para quem não os partilha? Se ele firmasse um paradigma, isso implicaria em julgar a totalidade da FC brasileira pela sua régua? Dificilmente. Os primeiros participantes do movimento têm sido cuidadosos em apontar interesse e valor literário num amplo espectro, e é impossível não reconhecer que muitos escritores podem contribuir fortemente para a evolução do gênero no Brasil, sem tocar diretamente na realidade ou na cultura brasileiras. Obras como Piscina Livre (1980), de André Carneiro, Do Outro Lado do Protocolo (1985), de Paulo de Sousa Ramos, ou O 31.º Peregrino (1993), de Rubens Teixeira Scavone, estão entre os melhores exemplos.

Além disso, parte da lógica subjacente ao movimento e sua denúncia da imitação de clichês (e da aceitação acrítica da ideologia que muitas vezes vem com eles) pressupõe uma consciência do lugardo qual falamos. E o lugar específico da FC no sistema literário brasileiro ainda é perfeitamente secundário e periférico. O lugar do movimento antropofágico dentro da FC brasileira é ainda maissecundário. Sua voz francamente miúda e minoritária não tem poder de realizar qualquer patrulhamento, mesmo que quisesse. Tudo o que faz é lançar breves conclamações e fornecer umas poucas metáforas que poderiam orientar uma abordagem, uma busca que venha substanciar a emersão daquela “verdade pessoal” de cada escritor, de que Braulio Tavares falava.

Essa voz recebeu um poderoso reforço com as novas opiniões de Tavares, mas não se tornou menos minoritária, como deixou claro a resposta a esta que foi claramente a segunda rodada do debate antropofágico.

Mas a resposta também deixou claro que nunca esse debate foi tão necessário. Individualmente, autores podem se isolar, mas as questões literárias são o sangue e a alma de uma literatura. No finalzinho de 2011, o Movimento Antropofágico da Ficção Científica Brasileira retornou para sugerir que ainda tem fôlego para ser uma questão viva, entre os autores da Terceira Onda.
>> O BULE – por Roberto de Sousa Causo

ROBERTO DE SOUSA CAUSO é autor dos livros de contos A Dança das Sombras (Caminho, 1999), A Sombra dos Homens (Devir, 2004), dos romances A Corrida do Rinoceronte (Devir, 2006) e Anjo de Dor (2009), e do estudo Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil (Editora UFMG, 2003), que recebeu o Prêmio da Sociedade Brasileira de Arte Fantástica. Seus contos foram publicados em revistas e livros de dez países. Foi um dos três classificados do Prêmio Jerônymo Monteiro (1991), da Isaac Asimov Magazine, e no III Festival Universitário de Literatura, com a novela Terra Verde (2000); foi o ganhador do Projeto Nascente 11 (da USP e do Grupo Abril) em 2001 com O Par: Uma Novela Amazônica, publicada em 2008. Completando um trio de novelas de FC ambientadas na Amazônia, Selva Brasil foi lançado em 2010 pela Editora Draco. Causo escreveu sobre os seus gêneros de interesse para o Jornal da TardeFolha de S. Paulo e para a Gazeta Mercantil, para as revistas ExtrapolationScience Fiction StudiesCultCiência HojePalavra Dragão Brasil. Mantém coluna quinzenal sobre ficção científica e fantasia no Terra Magazine (http://terramagazine.terra.com.br), a revista eletrônica do Portal Terra. O jornal A Tarde disse sobre ele: “Roberto de Sousa Causo é um dos mais atuantes escritores brasileiros de FC, horror e fantasia.” Vive em São Paulo, com esposa e um filho.


“O LIVRO É BOM, MAS NÃO É SUFICIENTEMENTE BRASILEIRO”

terça-feira | 10 | janeiro | 2012

A língua que somos, a língua que podemos ser

O que é menos pior: ser visto como um clichê ou ser ignorado?
Como os outros não nos veem –
e como nós não vemos os outros de nós.
Uma reflexão sobre o Brasil, a literatura e o poder

Países de Língua Portuguesa - Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste

A alemã Anja Saile é agente literária de autores de língua portuguesa há mais de uma década. Não é um trabalho muito fácil. Com vários brasileiros no catálogo, ela depara-se com frequência com a mesma resposta de editores europeus, variando apenas na forma. O discurso da negativa poderia ser resumido nesta frase: “O livro é bom, mas não é suficientemente brasileiro”. O que seria “suficientemente brasileiro”?

Anja (pronuncia-se “Ânia”) aprendeu a falar a língua durante os anos em que viveu em Portugal (e é impressionante como fala bem e escreve com correção). Quando vem ao Brasil, acaba caminhando demais porque o tamanho de São Paulo sempre a surpreende e ela suspira de saudades da bicicleta que a espera em Berlim. Anja assim interpreta a demanda: “O Brasil é interessante quando corresponde aos clichês europeus. É a Europa que define como a cultura dos outros países deve ser para ser interessante para ela. É muito irritante. As editoras europeias nunca teriam essas exigências em relação aos autores americanos, nunca”.

Anja refere-se ao fato de que os escritores americanos conquistaram o direito de ser universais para a velha Europa e seu ranço colonizador – já dos brasileiros exige-se uma espécie de selo de autenticidade que seria dado pela “temática brasileira”. Como se sabe, não estamos sós nessa xaropada. O desabafo de Anja, que nos vê de fora e de dentro, ao mesmo tempo, me remeteu a uma intervenção sobre a língua feita pelo escritor moçambicano Mia Couto, na Conferência Internacional de Literatura, em Estocolmo, na Suécia. Ele disse:

– A África tem sido sujeita a sucessivos processos de essencialização e folclorização, e muito daquilo que se proclama como autenticamente africano resulta de invenções feitas fora do continente. Os escritores africanos sofreram durante décadas a chamada prova de autenticidade: pedia-se que seus textos traduzissem aquilo que se entendia como sua verdadeira etnicidade. Os jovens autores africanos estão se libertando da “africanidade”. Eles são o que são sem que se necessite de proclamação. Os escritores africanos desejam ser tão universais como qualquer outro escritor do mundo. (…) Há tantas Áfricas quanto escritores, e todos eles estão reinventando continentes dentro de si mesmos.

Esta conferência de Mia Couto faz parte de um livro de ensaios belíssimo chamado “E se Obama fosse africano?” (Companhia das Letras). Indico com vários pontos de exclamação. Os ensaios de Mia Couto são tão inspiradores quanto seus romances. E o que ele diz sobre a África talvez pudesse ser dito sobre o Brasil, este país que é também um continente. E sobre todo um pedaço do planeta do qual se espera que seja de uma determinada forma.

Se ler um livro é ousar se abrir para o outro, exigir que o outro seja como você o imagina é o avesso da experiência literária. Se os editores europeus esperam que sejamos os outros que querem que sejamos, já não somos os outros, mas o estrangeiro domesticado que mora dentro deles. E assim, com um estrangeiro de estimação habitando o seu imaginário, já não precisam nos estranhar. E com isso perdemos todos. Os leitores europeus – que como nós nada têm de homogêneo e contêm tantas diferenças quanto possível – porque abrem mão de estranhar. E nós porque perdemos a chance sempre rica de que nos estranhem.

Nos Estados Unidos, apenas 3% de todas as obras publicadas foram escritas em outras línguas que não o inglês. Esta ínfima parcela abarca todos os outros idiomas e todos os gêneros, de livros técnicos à ficção. Se formos pensar apenas em literatura e poesia, o porcentual baixa para 0,7%. Não sei se existem estatísticas sobre qual é a fatia da língua portuguesa neste quase nada, mas parece evidente que é insignificante. Na tentativa de reverter o que chama de “shame” (vergonha), a Universidade de Rochester criou, em 2007, um site chamado Three Percent , para debater e divulgar todos esses universos literários que têm quase tanta dificuldade de ultrapassar as fronteiras dos Estados Unidos quanto os imigrantes ilegais. E, mesmo quando superam as barreiras, pouco ou nenhum espaço encontram na imprensa americana.

Uma língua não é apenas um amontoado de palavras que serve para se comunicar, mas um jeito de ser e de estar, de compreender o mundo e a si mesmo, o fora e o dentro. Em cada língua há um universo inteiro, e cada falante a recria a partir de sua experiência. É por isso que a língua é viva e mutante. Se o português falado no Brasil tivesse permanecido o mesmo de cem anos atrás é porque já estaríamos todos mortos. Como disse Fernando Pessoa, nós não habitamos um país, mas uma língua. E aqueles que são os últimos falantes de uma língua morta, porque para ser viva é preciso de um outro que também more nela, tem de renascer em outro idioma para que a vida seja possível. Ninguém vive para além das fronteiras da linguagem.

Saber que apenas 3% dos livros publicados nasceram em imaginários outros diz mais dos Estados Unidos do que de todos aqueles que não são vistos por eles. Na grande potência mundial – ainda que em crise – não se trata apenas de uma exigência de estereótipos, como na Europa, já que não há nem mesmo o interesse pelo clichê do outro. No caso dos Estados Unidos, não é necessário fingir estranhamento, já que parecem desconhecer que estranhar é preciso. A experiência de se abrir para a experiência do outro é ignorada. Ignorada como um não saber que há algo ali que vale a pena. Mesmo que faça todo o sentido por qualquer ângulo que se olhe, de Hollywood à política externa americana, ainda assim me parece espantoso que a língua que se impõe sobre o mundo seja também aquela que é fechada para o mundo de (quase) todos os outros. E isso, com certeza, explica muita coisa.

Não saberia dizer o que é menos pior: se a exigência de um clichê de Brasil também na literatura – o “suficientemente brasileiro” com que Anja Saile se depara no contato com os editores europeus – ou a indiferença até mesmo pelo clichê. Acho que a segunda realidade é mais nefasta, porque ao buscar o outro, ainda que seja pelo lugar comum, existe ao menos o risco de encontrar algo que subverta as expectativas e vire os mundos de ponta-cabeça.

E aqui, mais um pouco de Mia Couto:

– O mesmo processo que empobreceu o meu continente está, afinal, castrando a nossa condição comum e universal de contadores de histórias. (…) O que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência, mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa diversidade está sendo negada nos dias de hoje por um sistema que escolhe apenas por razões de lucro e facilidade de sucesso. Os autores africanos que não escrevem em inglês – e em especial os que escrevem em língua portuguesa – moram na periferia da periferia, lá onde a palavra tem de lutar para não ser silêncio.

Quem já viajou à Europa e aos Estados Unidos sabe que é quase impossível encontrar um guia de cidade, museu ou local histórico em português. É preciso se virar com o espanhol, se não souber inglês. No final de 2011, a imprensa deu destaque ao fato de que os brasileiros gastam o dobro do que os outros turistas em Nova York, e muitas lojas já mantêm um vendedor que fala português para facilitar a venda a clientes tão promissores. A economia está colocando a nossa língua pelo menos na boca de garçons e balconistas pelos circuitos turísticos do mundo rico em tempos de crise.

Será que o lugar de potência emergente conquistado pelo Brasil vai aumentar o interesse pela nossa literatura ou pelo nosso modo de ser? A nova posição do país no cenário internacional já começa a produzir novos clichês não só do mundo sobre o Brasil – mas do Brasil sobre si mesmo. O marketing e a propaganda estão aí para provar como se transforma imagem em verdade. Acredito que o estudo dos novos clichês que estão sendo produzidos fora e dentro do Brasil, sobre o Brasil, seja um caminho bem fascinante para compreendermos o momento vivido.

Isso me faz virar o olhar pelo avesso para que possamos enxergar melhor. Como qualquer um sabe, não somos apenas um Brasil, mas muitos. Só de Amazônias temos dezenas, talvez centenas e até milhares. Não há um semiárido, mas uma profusão deles. Assim como são muitos e diversos os Rios de Janeiro e é necessário mais de uma vida para alcançar todas as São Paulo só para descobrir que elas mudaram. Me parece que o Brasil se mantém unido pela sua diversidade – e pela forma de olhar para a sua diversidade. Neste percurso, a música foi bem mais importante do que a literatura.

Me preocupa, porém, a forma com que temos olhado para os outros de nós em um momento com tantas decisões em curso. Em geral, a partir do próprio umbigo e com as fronteiras eletrificadas. Uma parte significativa do que chamamos de brasileiros parece misturar o olhar europeu e o olhar americano, aqui explicitados pela literatura, ao se relacionar com tudo o que compreendemos como o outro. Sejam os miseráveis do Bolsa Família, classificados por uma categoria de renda que anularia suas diferenças; sejam os índios, que são vistos como se fossem todos iguais e, em geral, como um “entrave ao progresso”.

Talvez os indígenas sejam a melhor forma de ilustrar essa miopia, forjada às vezes por ignorância, em outras por interesses econômicos localizados em suas terras. Parte da população e, o que é mais chocante, dos governantes, espera que os indígenas – todos eles – se comportem como aquilo que acredita ser um índio. Portanto, com todos os clichês do gênero. Neste caso, para muitos os índios não seriam “suficientemente índios” para merecer um lugar e para serem escutados como alguém que tem algo a dizer.

Outra parte, que também inclui gente que está no poder em todas as instâncias, do executivo ao judiciário, finge que os indígenas não existem. Finge tanto que quase acredita. Como não conhecem e, pior que isso, nem mesmo percebem que é preciso conhecer, porque para isso seria necessário não só honestidade como inteligência, a extinção progressiva só confirmaria uma ausência que já construíram dentro de si.

O modelo de desenvolvimento com que vamos alcançar o futuro depende de como olhamos para os outros de nós e de que lugar ocuparão os outros de nós. Se não acolhermos a diversidade e a usarmos para sermos um Brasil mais igualitário – onde todos sejam igualmente diferentes – não acredito que exista muito futuro para nós, mesmo que o presente pareça promissor. O “Milagre Econômico” da ditadura militar também parecia muito promissor à parcela da sociedade brasileira que dele se beneficiou – e sabemos muito bem como isso terminou.

Para sermos grandes – com um conceito de grandeza que não se mede apenas em cifras – será vital inaugurarmos um jeito de olhar diferente tanto para o nosso próprio continente – onde começamos a nos impor como uma espécie de “Estados Unidos da América do Sul”, como ouço com tristeza cada vez que coloco os pés nos países vizinhos – como na forma como olhamos para dentro de nossas fronteiras. Inaugurar não um olhar condescendente – mas um olhar de quem sabe que tem algo a aprender com o outro.

O que seremos, me parece, será definido pela resposta que daremos a três impasses:

1) Se vamos conseguir construir um modelo de desenvolvimento baseado no século XXI – e não no século XX, como me parece que é o atual;

2) Se vamos acolher os conflitos e dialogar com as culturas dos vários Brasis que nos compõem ou vamos exterminá-los à força, ainda que seja pela força da manipulação da lei;

3) Se vamos conseguir vencer o desafio da educação, mas não só isso: se a inclusão pela escrita será capaz de abarcar a riqueza da nossa oralidade em lugar de silenciá-la.

O que o Brasil será vai depender da sua capacidade – ou não – de incluir todos os outros de si.

No desafio que nos espera, é preciso lembrar que nós não temos língua – somos língua.

Como disse Mia Couto, de forma magistral, na conferência já citada:

– O que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural. Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. De outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem.

Para “ser asa e viagem” é preciso acolher todos os outros de si. Não tolerar o outro, mas ser o outro.

Veremos.

>> REVISTA ÉPOCA – por Eliane Brum

ELIANE BRUM é jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance – Uma Duas (LeYa) – e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.


PÁGINAS DO FUTURO: FICÇÃO CIENTÍFICA À BRASILEIRA

segunda-feira | 9 | janeiro | 2012

Uma coletânea de contos de ficção científica, mas sem Isaac Asimov, H.G. Wells ou Ray Bradbury. Nela, em vez desses nomes óbvios do gênero, você vai encontrar autores brasileiros, alguns bem conhecidos, outros nem tanto. É assim o livro Páginas do Futuro, organizado pelo escritor Bráulio Tavares, que reúne nomes como Ademir Assunção, Jerônymo Monteiro e Fábio Fernandes e outros que dificilmente se poderia imaginar como cultores do gênero sci-fi entre nós: Raquel de Queiroz, Joaquim Manuel de Macedo e Rubem Fonseca.

De fato, como imaginar que a autora de um clássico do romance regionalista como O Quinze poderia escrever um conto de ficção científica como Ma-Hôre, tão intenso e enxuto que bem poderia ser filmado por um grande estúdio norte-americano? “É a única incursão conhecida dela no gênero”, diz Bráulio, ele próprio um cultor da ficção científica (é autor de Mundo Fantasmo, entre vários outros livros). Quem diria que Joaquim Manuel de Macedo, autor de um daqueles romances mais lidos de forma compulsória pelos estudantes brasileiros, A Moreninha, investiria imaginação numa descrição apocalíptica como em O Fim do Mundo? Ou que um príncipe da narrativa policial como Rubem Fonseca fizesse também sua única incursão no gênero sci-fi com um thriller futurista sobre um Rio de Janeiro, que se parece à Los Angeles de Blade Runner, de tão distópico, violento e caótico?

O fato é que, surpresas à parte, com Ma-Hôre, Raquel de Queiroz assina um dos melhores contos do volume. O título seria o nome de um homúnculo de aparência benigna, embarcado involuntariamente em uma nave pilotada por humanos e que o leva à Terra, para longe do seu planeta natal. Raquel trabalha com habilidade o tema do “estranho entre nós” e prepara um desfecho surpreendente para o leitor. Ao ler esse conto, impossível não pensar que a autora deveria ter se dedicado um pouco mais ao gênero.

O Fim do Mundo, originalmente publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 1857, é o mais antigo texto da antologia. Aparece mais como uma curiosidade, glosa reiterada sobre os supostos efeitos libertários de um eventual cataclisma planetário. O tema, de tão presente no inconsciente coletivo, reaparece até mesmo na música popular, no conhecidíssimo “Anunciaram que o mundo ia se acabar”, de Assis Valente, celebrizado na voz de Carmem Miranda .

Já O Quarto Selo, texto originalmente publicado em Lucia McCartney, em 1967, mostra a narrativa típica de Fonseca, com seu estilo e personagens implacáveis, apenas deslocados para um futuro um tanto indefinido. Como escreve Braulio Tavares, Rubem Fonseca, embora admirador confesso da ficção científica, pouco se aproximou do gênero, sendo este conto uma notável exceção em sua obra.

É, no entanto, com os autores menos conhecidos que o livro reserva as melhores e maiores surpresas, em especial para o leitor pouco familiarizado com o que se faz na FC brasileira. Por exemplo, Exercícios de Silêncio, de Finisia Fideli. O organizador nos informa que Finisia é médica homeopata e faz parte do grupo de autores cujo surgimento é ligado ao Clube de Leitores de Ficção Científica. A abordagem do conto é muito original e lembra, em seu clima, algumas passagens de uma obra famosa nos anos 1960, O Despertar dos Mágicos, de Louis Powells e Jacques Bergier. No relato, o protagonista Theo (a escolha do nome não se dá por acaso) tem a nave avariada e desce num planeta onde vive uma população que se desenvolveu de maneira diferente da humana. É uma civilização low-tech, na qual a apropriação tecnológica da natureza é substituída pela consciência de si e da sua posição no cosmos. Ao invés de método científico, meditação transcendental. Por paradoxo, é através da meditação e do silêncio interior que Theo poderá resolver o grave problema técnico que o impede de voltar à Terra.

Inútil dizer que essas histórias – a de Finisia e outras – contêm um comentário crítico da relação do homem com a técnica, quando esta parece dominá-lo e não o contrário. É um traço interessante e ambivalente o da sci-fi, ao apoiar-se num virtual avanço tecnológico para, não raro, denunciar-lhe as implicações e os perigos para a vida humana. Caso, por exemplo, de Eu, Robô, de Isaac Asimov, um clássico sobre a revolta das máquinas.

De qualquer forma, nota-se na seleção proposta a preocupação com uma FC que seja, não digo “autenticamente” brasileira (já que esse estado de pureza não existe), mas que se expresse em sotaque nacional, respire nossos temas, e corte, de certa forma, o cordão umbilical com o o qual se liga ao mainstream do gênero, a matriz anglo-saxônica.

No estudo introdutório que escreve para Páginas do Futuro, Braulio remonta a três tradições presentes na formação da FC contemporânea: a dos antigos, com seus relatos fantásticos, tais como a Odisseia de Homero e as Metamorfoses de Ovídio. O Scientific Roman europeu, cunhado no seio da Revolução Industrial, e que tem Jules Verne e H. G. Wells entre seus nomes mais representativos. Por fim, os pulp magazines norte-americanos que, nos anos 1920 e 1930, estabelecem as bases da FC moderna. É com essas tradições que os autores brasileiros têm de dialogar. Porém, sem se submeter a elas. Como escreve Braulio, “A FC brasileira não pode abrir mão de um conhecimento da FC internacional sob o risco de deixar de ser FC, e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura do nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira”.

A diversidade apresentada no volume e sua antiguidade nas letras brasileiras, ainda que de forma episódica, deixam antever boas páginas no futuro da FC à brasileira. Desde que a deglutição das tradições estabelecidas se dê de maneira criativa e original. Não por acaso, um autor como Ivan Carlos Regina publicou, em 1988, seu Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira. Inspirado nos nos modernistas de 1922, Ivan entende ser necessária a deglutição radical dos nutrientes estrangeiros para a produção da proteína nacional. Num trecho do manifesto, escreve: “Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas.”

Páginas do Futuro dá uma amostra bem variada de como esse processo de deglutição e digestão tem se dado entre nós.

Sobre o coordenador do livro
Braulio Tavares (1950) nasceu em Campina Grande, na Paraíba, e mora no Rio de Janeiro. É escritor, poeta, compositor (tem cerca de 20 músicas em parceria com Lenine, por exemplo), cronista e organizador de antologias. Entre elas, Páginas de Sombra (Contos Fantásticos Brasileiros), Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, Freud e O Estranho (Contos Fantásticos do Inconsciente) e Contos Obscuros de Edgard Allan Poe. É autor dos livros A Espinha Dorsal da Memória (1989), A Máquina Voadora (1994), Mundo Fantasmo (1996) e ABC de Ariano Suassuna (2007), entre outros. Escreve crônicas diárias para o Jornal da Paraíba, transcritas em seu blog Mundo Fantasmo  mundofantasmo.blogspot.com). Como concilia tantas atividades? “No fundo sou apenas um escritor”, disse, em conversa com o Estado. “É o exercício da palavra escrita que dá o fio condutor em tudo o que faço”.
>> O ESTADO DE SÃO PAULO – por Luiz Zanin

TRECHOS

“A sorte, pensavam os astronautas, é que o seu pequeno cativo tinha o coração ligeiro ou filosófico. Porque depressa aceitou o irreparável e tratou de adaptar-se. Auxiliado pelos desenhos, com rapidez adquiriu um bom vocabulário na língua dos humanos. Tinha a inteligência ávida de um adolescente bem dotado…Também contava coisas da sua gente que, na água, elemento dominante em nove décimos do pequeno planeta, passavam grande parte da sua vida”
(Ma-Hôre, Raquel de Queiroz)

“Passaram toda a noite imersos no mundo luminoso do copo de cristal, ela vendo massas humanas a caminhar por um terreno sem fim, entremeadas de pesados carros de guerra. Via o brilho de armas, das pontas das lanças; o reflexo da luz nas lâminas de espadas desembainhadas. Via rolos de pó erguerem-se por cima dos soldados.”
(O Copo de Cristal, Jerônymo Monteiro)

Serviço:
“Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção Científica”
(seleção e apresentação de Braulio Tavares. Ilustrações de Romero Cavalcanti).Editora Casa da Palavra, 160 páginas.


“A ILHA”, DE FLÁVIO CARNEIRO

segunda-feira | 9 | janeiro | 2012

Com A Ilha (Rocco, 208 págs.), o escritor goiano Flávio Carneiro fecha a sua Trilogia do Rio de Janeiro, iniciada com A Confissão (que resenhamos aqui em 15 de dezembro de 2007), tendo como segundo volume O Campeonato, de 2002.

Um dos mais interessantes projetos da literatura brasileira da atualidade, a trilogia trabalha obras fronteiriças entre o mainstream literário nacional e a ficção popular de gênero: o primeiro livro se aproxima do horror sobrenatural, com uma história de um vampiro emocional carioca; o segundo dialoga com a ficção de crime; e, finalmente, A Ilha é uma ficção científica que evoca a nobre tradição da utopia.

No Brasil, a utopia e sua gêmea do mal, a distopia, têm uma longa história. Na década de 1920 tivemos um Ciclo de Panfletos Utópicos que defendia a eugenia e a higienização como soluções para o subdesenvolvimento tupiniquim. Cinquenta anos depois, o mainstream recrutou as duas irmãs para, veladamente, satirizar a ditadura militar e a tecnocracia que o acompanhava. Na primeira fase, nomes como Monteiro Lobato e Rodolpho Teóphilo; e na segunda, Ruth Bueno, Chico Buarque, André Carneiro e Ignácio de Loyola Brandão.

Flávio Carneiro escapa das armadilhas desses dois momentos anteriores, já que evita ser prescritivo ou abertamente crítico, num romance que dialoga com nada menos que A Utopia (1516), de Thomas More (1478-1535), também ambientado em uma ilha. Mas se trata de um diálogo discreto, conduzido de modo apenas alusivo. Também de maneira muito condizente com o projeto geral da antologia, o livro convoca outros diálogos intertextuais: um trecho das praias do Rio de Janeiro, centrado em torno do Leme até o Morro de Santa Teresa e a Lagoa Rodrigo de Freitas, separa-se do continente e passa a vagar pelo Atlântico – como acontece com Portugal, em A Jangada de Pedra (1986), do nobelista José Saramago (1922-2010).

Garrafas começam a chegar à praia, contendo em seu interior mapas artesanais. Por meio desses, alguns dos moradores vão se dando conta de que a sua ilha pode estar se dirigindo de volta ao continente. Esses personagens – Bernardo e Clara, Pepe e Catarina, Andador e seu cachorro – se sentem intrigados pela possibilidade, e começam a se perguntar como isso seria possível. A primeira hipótese levantada seria a da deriva tectônica, fenômeno natural que, cientificamente, nunca poderia explicar o deslocamento. Mais tarde, uma complexa teoria high-tech passa a tomar forma, envolvendo clonagem e uma tecnologia revolucionária que permitiria a recriação da matéria complexa. Ao mesmo tempo em que os dois casais (em especial) realizam a sua investigação – a partir da sua sociedade low tech -, pessoas e depois construções inteiras começam a desaparecer da ilha.

A fonte dessa teoria sobre a qual eles especulam é um romance de ficção científica chamado O Projeto Genesis, escrito por um certo P. D. Deckard – nome que traz o renomado autor norte-americano Philip K. Dick (1928-1982) para o jogo intertextual de Carneiro. A exegese dessa obra de “Deckard” (homônimo do herói de O Caçador de Andróides, livro inspirador do filme Blade Runner) é que fornece as pistas que os casais de protagonistas investigam. O romance de Carneiro, porém, não tem nada do clima de paranoia habitual em Dick, e a investigação do que se passa na ilha não leva os protagonistas a situações de perigo nem a descobertas que ameacem as suas identidades. Ao contrário, mesmo com os desaparecimentos, a vida na ilha segue mansa, e os protagonistas parecem tão interessados um no outro quanto na resolução do mistério.

O autor não caracteriza a vida utópica na ilha, seja em termos políticos ou sociais. É essa vida mansa praiana – amparada por uma prosa agradável, impregnada de doçura e calor humano – uma das poucas pistas que o leitor tem para compreender como funciona a alegoria no romance. A alegoria de A Jangada de Pedra remete a um sentimento de inadequação de Portugal, em relação ao restante da Europa. Em A Ilha, parece sugerir que um certo espírito carioca, romântico, descomplicado e singelo, só poderia sobreviver com a sua separação física do resto do Brasil. Por isso, minha tendência é associar o teor do livro à minha ideia de um “sonho brasileiro” de vida mansa próxima à natureza, que estaria presente na ficção científica brasileira desde, por exemplo, a novela utópica “Zanzalá” (1936) de Afonso Schmidt (1890-1964). E nesse mesmo sentido, é interessante contrapor A Ilha ao romance tupinipunk de Fausto Fawcett, Santa Clara Poltergeist (1991), com seu relato distópico e desumanizado de Copacabana.

Mas A Ilha não se resume à evocação de um sonho brasileiro que parece ameaçado – literalmente em desintegração – pelo retorno a (ou advento de) uma realidade nacional que não lhe dá amparo, mas traz nova instância do tipo de dramatização da relação autor/leitor que Flávio Carneiro já havia favorecido em A Confissão. Desta vez, o narrador partilha do espaço em que vivem os personagens, e aponta situações e cenas a um “leitor” que às vezes parece estar ao seu lado, olhando de longe ou de perto por uma janela metafórica que representa o foco narrativo. Ele pode estar organicamente ligado às situações do romance como um supervisor ou observador daquele grande experimento aludido nas teorias de Bernardo e Clara, Pepe e Catarina. Nos livros da Trilogia do Rio de Janeiro, Carneiro parece estar criando a sua própria prática metaficcional.

Livre de peripécias e sem um enredo estrito, a narrativa de A Ilha caminha num espaço de indeterminação entre afirmação e dúvida. Um projeto engenhoso e intrigante, um bom momento daquela tendência dominante da ficção científica feita no Brasil, que emprega as imagens do gênero com objetivos programáticos e estéticos próprios do mainstream literário.
>> TERRA MAGAZINE – por Roberto de Sousa Causo

Num futuro indeterminado, os habitantes de uma ilha perdida num oceano qualquer acreditam que são os únicos sobreviventes de uma grande catástrofe, que teria varrido o resto do planeta para debaixo das águas. Até o dia em que aparecem na praia misteriosas garrafas, com mapas sugerindo a existência de um continente, não muito distante dali. A partir de então estranhos acontecimentos vão mudar, de forma radical, a rotina da ilha.

O narrador dessa aventura é um velho bibliotecário franciscano, enclausurado na torre de um convento. Cercado de livros, é ele quem conduz o leitor por um estreito caminho entre a realidade e a fantasia, num relato em que conceitos como vida artificial, campo magnético e experiências genéticas convivem com cenários paradisíacos, lembrando um passado remoto.

Em meio às cenas insólitas que vão compondo a trama, o leitor vai conhecendo personagens que encarnam a cada página a loucura, o sonho, a dúvida, vivendo sempre a um passo da próxima surpresa.

Se você é alguém de carne e osso, está em suas mãos um romance que fala sobre a dificuldade de estabelecer o que é real e o que é imaginário, o que é sonho e o que de fato aconteceu. Como diz a certa altura o narrador, confiar em romances é como confiar nas ondas do mar. Por isso, na busca dos personagens pela verdade, cabe ao leitor a última palavra sobre os mistérios que envolvem A ilha.
Texto publicado na orelha do livro)


BANG BANG! – “SAGAS 2, ESTRANHO OESTE”

segunda-feira | 9 | janeiro | 2012

Antes de começar a falar sobre esse livro de contos sobre o Estranho Oeste (Argonautas, 144 págs.), devo esclarecer uma pergunta que muitos de vocês devem estar fazendo neste momento,“O que diabos é Estranho Oeste?!”

Estranho Oeste ou Weird West, para as pessoas nem um pouco familiarizadas com o termo, é um gênero mistura o Faroeste americano com outros estilos, normalmente, o horror, o oculto ou a fantasia. Acredito que o exemplo mais recente seria Cowboys & Aliens (leia a resenha da Cherry_B aqui), mas há outros exemplos igualmente famosos como Jonah Hex, a sagada Torre Negra do Stephen King, os quadrinhos Weird Western Tales da DC Comics e até mesmo o animê Trigun.

Agora que estamos todos na mesma página (vocês estão, NÉ??!!), vamos ao livro!Sagas 2 – Estranho Oeste é o segundo volume da coleção de contos da série Sagas da Argonautas Editora (confira a resenha de Sagas 1). O livro é bem curtinho e é composto por cinco contos, na seguinte ordem:

– Bisão do Sol Poente por Duda Falcão
– Aproveite o Dia por Christian David
–  por Alícia Azevedo
– Justiça… Vivo ou Morto por M.D. Amado
– The Gun, the Evil and the Death por Wilson Vieira

O primeiro conto é sobre um caçador de recompensas, Kane Blackmoon, que está à procura de Herdandés Calderón, um ladrão de bancos altamente procurado e com uma cabeça extremamente valiosa. No meio de sua perseguição, Kane encontra muitos mutilados, uma cidade fantasma, um índio sioux e uma lenda sobre demônios envolvendo sua linhagem indígena. Por algum motivo que ainda não soube identificar, não gostei muito desse conto do Duda, sei lá, simplesmente não consegui me empolgar muito com ele e os personagens não me cativaram. O Bisão do Sol Poente foi um dos contos mais fracos do livro, não que seja ruim, mas…

Em seguida, somos apresentados ao conto de Christian David, que é sobre o pistoleiro Jeremiah ou O Profeta, como é conhecido pelas bandas do Oeste por seus pressentimentos, que, curiosamente, ele simplesmente tenta ignorar ao máximo. Ignorar o próprio instinto é o que o leva a entrar e permanecer no Belle’s Saloon, que desde o início já estava ativando aquele botãozinho atrás da cabeça que diz , “PELO AMOR DE DEUS, ARREDA O PÉ DAQUI, PESSOA!”. Jeremiah é avisado pela gaçornete a sair de lá e comer em outro lugar, mas o estômago foi mais forte e obrigou o pobre homem a comer aquela comida de aparência horrível. Logo depois de comer, Jeremiah descobre que realmente deveria ter dado atenção ao seu mau pressentimento e a garçonete desde o início… Verdade seja dita, esse foi o melhor conto do livro inteiro! A narrativa do Chris (sim, já somos íntimos apesar de não nos conhecermos! :3) te prende desde o início e não tem cômo não gostar do Jeremiah e rir horrores com seu pânico e sua constante batalha interna sobre seus dons paranormais.  E o final do conto é ótimo! Aliás, tudo no conto é muito bom! O meu favorito, com certeza.

No terceiro conto conhecemos a história da freira Beatrix, que tem todas suas crenças mudadas completamente após um ataque ao convento onde ela vivia no qual ela foi a única a sair com vida, ao ser salva por um misterioso homem com um manto negro que cobra de Beatrix como pagamento por salvá-la apenas fé incondicional. Graças a esse homem, Beatrix, agora uma pistoleira, é capaz de se vingar dos assassinos que atacaram seu convento.  é recheado de diálogos e questionamentos interessantes e o tempo todo você quer saber quem é o cara com o manto negro (o que infelizmente não é revelado =X). Esse conto só não é tão bom porque não é um livro completo (sim, ele daria um livro muito bom).

O quarto conto é a história de um pistoleiro, Cole Monco, que fica curioso ao ver um garoto atirando em várias latinhas e vai até ele para perguntar por que ele está fazendo isso. Cole descobre que o nome do menino é Josh e que ele está treinando para matar os executores de sua família. O pistoleiro não é de ajudar muito as pessoas, mas se identifica com o menino e sua história e decide por ajudá-lo. Cole, então, vai atrás do delegado Pat Stevenson para axiliá-lo, mas quando eles voltam ao Saloon onde Cole encontrara o menino, o dono do salão diz que não existe nenhum garoto e que Cole conversava sozinho o tempo todo… Justiça…Vivo ou Morto é um ótimo conto e bem narrado, em muitos momentos fiquei questionando assim como o próprio Cole se ele estava ficando louco e se Josh realmente existia. E o final? Eu não esperava um desfecho daqueles e eu gosto muito ser surpreendida com um bom final. Gostei muito deste conto!

O quinto conto é a narrativa de um assassino que mata por prazer, Tom William Ketchun, que ao chegar em uma cidade praticamente deserta num dia bem chuvoso, entra em um local chamado Las Cruces. Logo Tom é avisado de que o lugar estava fechado, porque logo haveria um julgamento. O que Tom não esperava é o julgamento fosse o dele! Me sinto até mal e culpada por falar isso, mas eu DETESTEI o conto do Wilson, que tem uma ótima premissa, no entanto desandou completamente. Não me dei com narrativa lenta e previsível do autor e a história depois de algumas páginas ficou sem pé nem cabeça e terminou de uma forma mais maluca ainda. Em comparação aos outros quatro contos, este é bem fraquinho. Contudo, a prática, a tentativa e o erro são ótimos amigos e professores, sendo assim, acredito que Wilson Vieira melhorará com o tempo e o treino.

No geral, Sagas 2 – Estranho Oeste é um livro bem divertido e assim como o primeiro coleção, o prefácio (dessa vez escrito por Thomaz Albornoz) está maravilhoso (sério, descubro horrores de coisas interessantes nesses prefácios) e a edição está ótima, apesar de uns errinhos aqui ou acolá, mas acontece.
>> NEM UM POUCO ÉPICO – por Val


“AMOR OCULTO”, DE LAURA ELIAS

segunda-feira | 9 | janeiro | 2012

Contar uma boa história em volta da fogueira é uma imagem idílica, até certo ponto mitológica, que não me abandona. Quem consegue, através de sua narrativa, fazer com que suas palavras permaneçam impressas atrás de minhas retinas desta maneira merece todo o meu respeito.

Ao ler Amor oculto (Mythos, 2011 – 126 páginas)esta é a impressão que tenho. Laura Elias domina as palavras, é uma contadora de histórias experiente, sabe jogar com o leitor, foi forjada na arte de escrever e se formou pela receptividade dos leitores. Deveria ser uma fórmula de sucesso. Mas o reconhecimento por aqui é difícil, a internet quebra barreiras, mas não diminui o abismo com o que vem de fora. O descaso com que nossos autores são tratados muitas vezes me deixa enojado.

Já escreveu mais de 30 livros, quase todos publicados, muitos deles de banca, sob pseudônimos Loreley McKenzie, Laura Brightfield, Suzy Stone, Elizabeth Carrol, Sophie H. Jones. Experiência não lhe falta. Depois de saber desta história através de uma comunidade, quis conhecer mais sobre a autora e trocamos algumas palavras e alguns emails, que me fizeram fã, por sua postura e ainda mais por sua imensa simpatia.

Partamos para o que realmente interessa – a narrativa desta escritora genial. Como todos podem observar gosto de ligar narrativas a imagens de outros livros ou de filmes para que possamos fazer inferências, para que tudo se torne um pouco mais claro a quem ainda não tem contato com alguns autores.

No caso de Laura Elias, não consegui fazê-lo. Seria isso então originalidade? Não diria isso, mas é difícil classificá-la.  Ela tem sua fórmula: mistério + paixão. Tem um público alvo, mas ainda assim consegue despertar em qualquer público o prazer da leitura. Muitos são os diálogos, que tornam o livro saboroso, pois eles são a alma de uma boa narrativa.

Antes do prólogo, uma espécie de prenúncio já dá o teor do que virá pelo livro:

A barreira da ética profissional dissolvia-se diante do que lhe era oferecido, diante do que ele tanto queria, diante da tentação que via em seus olhos, não mais serenos, mas ardentes como as fogueiras pagãs.

Pronto, já estamos fisgados, e o que vem depois é “hot” muito “hot”. O livro conta a história de Bervely Manson, escritora, que após matar sua personagem principal acaba matando sua inspiração. Resolve então acompanhar uma amiga a um antiquário e encontra lá um caderno cheio de histórias inacabadas. Ela decide terminar as histórias, sua inspiração renasce. Porém, há uma advertência feita pela antiga dona dos cadernos. Ela não dá nenhuma importância a ela. Daí coisas estranhas começam a acontecer, tudo o que escreve passa a acontecer. Seria uma maldição? Aha… não irei contar mais nada. O inexplicável geralmente nos perturba e o livro está repleto de coisas que irão se encaixar apenas no final.

“… como fugir da realidade quando ela se torna ainda mais bizarra que o sonho? Como fugir se nem mesmo dormindo havia paz? Se os fantasmas e demônios alheios passaram a habitar sua vida?

E não poderia deixar de colocar aqui alguns trechos para deixar a todos um pouco mais alvoroçados:

O desejo:

“… olhou para ela, ainda segurando-a pelos ombros. Sentia vontade de tocá-la, passar os dedos por aqueles mamilos que a blusa insinuava, beijar-lhe a delicada linha do queixo, os lábios sedentos, os olhos serenos… explorar aquela mulher com força, com carinho, com sofreguidão.

A sedução:

“… balançou lentamente a cabeça de um lado para o outro, a malícia dançando em seus olhos. Com um gesto rápido, ergueu-se e arrancou o vestido, expondo-se, despudorada, em sua calcinha negra, rendada, por onde os pelos loiros apareciam, qual tesouro guardado apenas para ele.”

O embate:

“Apalpou-lhe as formas e depois se deixou pesar em seu corpo, apenas para ouvi-la gemer. Sua voz penetrava-lhe os ouvidos e o deixava cada vez mais excitado.”

É claro que cortei os diálogos e as partes mais quentes. Portanto, podem correr! Leiam e me contem depois se Laura é ou não dona de uma imaginação fértil e diabólica. Estamos totalmente desarmados quando ela começa a contar suas histórias. E citando um trecho de seu próprio livro: Que segurança as armas poderiam oferecer contra a imaginação?
>> LITERATURA DE CABEÇA – por Rodolfo Euflazino


PERSONAGENS SOBRENATURAIS INVADEM NOVELAS BRASILEIRAS

quinta-feira | 5 | janeiro | 2012

Personagens sobrenaturais estão cada vez mais presentes nas produções brasileiras. Foto: Afonso Carlos/Carta Z/Divulgação

O naturalismo das novelas sempre conviveu com o sobrenatural. Desde a pioneira O Terceiro Pecado, de 1969, que autores como Ivani Ribeiro, Janete Clair e Dias Gomes recorrem a fenômenos que passam ao largo das explicações científicas. Com o entretenimento na ordem do dia, criadores variam estilos e inspirações, que vão das lendas folclóricas ao futurismo da ficção-científica. Além disso, o sobrenatural também está fortemente presente em folhetins com temas religiosos, seja na polêmica discussão sobre a vida após a morte, ou na adaptação de histórias bíblicas. “As pessoas querem ligar a tevê e sonhar. Sempre que posso, coloco personagens com algum dom obscuro em minhas novelas”, diverte-se Aguinaldo Silva, que desde o início da carreira, bebe na fonte do realismo fantástico original de Dias Gomes, autor de clássicos do gênero, como O Bem-Amado, de 1973, e Saramandaia, de 1976.

Aguinaldo já brincou com o sobrenatural em várias de suas novelas. Inclusive, na atual Fina Estampa, o autor vem aumentando cada vez mais a dose de situações inexplicáveis, com as visões sobre o futuro de Luana, de Joana Lerner, e o súbito aparecimento de Enzo, de Júlio Rocha, que supostamente, caiu do céu. Com intensidades diferentes e resultados oscilantes, outras produções recentes apostam em uma injeção de histórias do além em seus roteiros. A abordagem de forças ocultas está fortemente presente na recém-terminada O Astro , na nova das sete, e Aquele Beijo – onde Bruno Garcia faz um vidente. E é a base da atual temporada de Malhação, cheia de referências a séries americanas, que misturam ficção científica e histórias em quadrinhos. “Queria falar da conectividade das pessoas com elas mesmas, com seus sonhos e intuições. O que puxa a trama é o número 1046”, explica a autora Ingrid Zavarezzi, referindo-se ao número que aparece nos sonhos de Alexia, de Bia Arantes.

Embora o tema tenha derrubado a audiência da novelinha da Globo, que patina nos 16 pontos, a inspiração em gibis e “sci-fi” já rendeu à Record bons índices no ibope. No entanto, com a saga mutante de Caminhos do Coração – criada por Tiago Santiago, em 2008 – as referências foram além. No mesmo caldeirão, Tiago misturou vampiros, super-heróis, espiritismo, mitologia grega, entre outras. “A grande viagem da novela foi não se limitar. Essa liberdade foi fundamental para o sucesso dos mutantes”, conta o autor.

Mais recentemente, outra trama que aglutinou inúmeras referências foi o “remake” de O Astro. Baseado na novela original de Janete Clair, exibida em 1978, a adaptação abusou de assombrações, alucinações e ilusionismo. “O Herculano poderia ter ido por vários caminhos, desde a esquizofrenia até o espiritismo”, analisa Rodrigo Lombardi, intérprete do anti-herói, que com seus “poderes”, escapa inúmeras vezes da morte e chega ao comando do grupo Hayalla. Para Thiago Fragoso, que deu vida ao frágil Márcio, a angústia espiritual dos personagens da novela foi o principal chamariz de público. “A levada espírita da novela estava diretamente ligada ao jogo de poder entre os personagens. As cenas do Salomão tentando de se comunicar com o Márcio eram bem assustadoras”, conta Thiago, referindo-se aos ataques sofridos por seu personagem ao se comunicar com o falecido pai, Salomão Hayalla, de Daniel Filho.

A interação entre pessoas em planos espirituais diferentes foi o mote de muitas novelas de Ivani Ribeiro, comoO Sexo dos Anjos e A Viagem. Atualmente, a herdeira direta de tramas com essa temática é a mineira Elizabeth Jhin, autora de Escrito nas Estrelas, novela que abordou a fertilização de uma mulher a partir do sêmen de um homem já morto. “Quis falar como o espírito desse homem lida com esse filho que vai nascer. Para minha sorte, o público embarcou na história”, ressalta a autora, que volta ao ar no primeiro semestre de 2012, com outra trama de tons espirituais, que tem título provisório de Marajó.

Transtornos e delírios
Além do sobrenatural, alguns mistérios da teledramaturgia nacional também têm atestado médico. Seja para destacar a doença ou apenas fazer rir, a esquizofrenia já foi tema de novelas e seriados da tevê. Em Alma Gêmea, de 2005, a personagem Alexandra, de Nívea Stelman, sofria com as vozes e os espíritos que lhe atormentavam. “O problema dela foi crescendo aos poucos, e não poderia ser definido apenas como esquizofrenia. Pois ela conseguia se comunicar com os mortos da trama”, opina a atriz.

Na contramão do drama, o seriado A Mulher Invisível, parte da doença para fazer humor. Baseado no filme homônimo de 2009, a produção acaba de ganhar uma segunda temporada, e conta a história de Pedro, de Selton Mello, um publicitário que encontra a mulher de seus sonhos. Porém, só ele consegue enxergá-la. “É uma comédia sobre esquizofrenia, ou sobre a solidão. Ela só é realmente a mulher ideal porque não existe”, destaca Selton.

Instantâneas
# No ano passado, Selton Mello também protagonizou A Cura, série cheia de mistérios que relacionavam medicina, assassinatos e religiosidade.

# Em Araguaia, de 2010, Solano, de Murilo Rosa, era um homem marcado para morrer por conta de uma maldição indígena que assombrava sua família há muitas gerações. Nela, todos os homens de sua linhagem morrem muito jovens, sempre próximos às margens do rio Araguaia.

# Histórias de lobisomens e vampiros andam em alta nos filmes de Hollywood, e já figuraram em diversas novelas brasileiras, como Roque Santeiro, de 1985, Vamp, de 1991, e O Beijo do Vampiro, de 2002.

# Em Páginas da Vida, de 2006, a jovem Nanda, de Fernanda Vasconcellos, morre logo no início da trama, mas aparece em forma de fantasma para pessoas de sua família.
>> TERRA – da Redação


A DIVERSIDADE SEXUAL NA LITERATURA FANTÁSTICA

quinta-feira | 5 | janeiro | 2012

A arte imita a vida ou a vida imita a arte?

Enquanto a mídia discute a temática da diversidade sexual à medida que os governos do mundo todo começam a adotar políticas que finalmente param de fechar os olhos a algo que já é realidade há muitos anos, observamos que a literatura começou a incluir personagens gays em suas histórias.

E, como não poderia deixar de ser, gostaria de focar na literatura fantástica, que, por natureza, é a que atinge os jovens e consegue chamar a atenção deles para os mais diversos assuntos, mesmo que de forma sutil. Li ultimamente livros de grande sucesso internacional (entre os best-sellers do The New York Times) que traziam personagens gays no núcleo protagonista.

A série Morada da Noite (House of Night, no original), de PC Cast e Kristin Cast, traz Damien como um dos melhores amigos da personagem principal, assim como a série Os Imortais, de Alison Nöel, traz Miles, também gay, no círculo das principais amizades da protagonista.

As duas séries tem muito em comum, já que surgiram na onda dos romances sobrenaturais, e Miles e Damien se parecem muito: são legais, adoráveis, e um tanto estereotipados.

No entanto, as histórias não são sobre eles. Os rapazes, nos livros em que aparecem, são apenas coadjuvantes, de cuja vida nem ficamos sabendo muito. Na verdade, salvo poucas palavras, e o papel que desempenham na vida da protagonista, poderiam sumir da história ou serem trocados por uma amiguinha, e não faria a menor diferença.

Isso é bom ou ruim?

Se a proposta é mostrar que os gays estão sendo incluídos, é péssimo, porque não os inclui. Por outro lado, podemos considerar que a inserção de um personagem homossexual acabou ficando tão natural que nem é preciso grande alarde para o fato. E, nesse caso, é um pouco hipócrita, porque a sociedade ainda teima em segregar essas pessoas como se fossem realmente diferentes de todo o resto – os normais, os héteros.

Um amigo meu uma vez escreveu em algum canto, talvez no Twitter, que não é que os gays queiram dominar o mundo. Eles simplesmente querem ter o direito de ler um livro ou ver um filme em que o foco da história seja um casal gay. E isso não precisa ser ofensivo para quem é hétero, porque há décadas e décadas todos leem e assistem o que está passando. Sempre a mocinha e o mocinho apaixonados passando por uma espécie de conflito e vivendo felizes para sempre depois.

JK Rowling revelou, fora do ambiente de Harry Potter, que o mago e mentor de Harry, Dumbledore, era gay e apaixonado por seu maior inimigo e antes melhor amigo, Grindenwald. Alguns falaram que a autora não quis revelar essa informação antes porque seria muito estranho os dois andarem juntos sendo que o velho diretor era gay. Pessoalmente, acho que nada foi mencionado no livro porque a informação não cabia no contexto da história.

É de extremo mau gosto a enxurrada de comentários sobre Dumbledore ser um pedófilo que se seguiu ao anúncio de Rowling. Isso só prova o quanto a sociedade continua preconceituosa, e os parcos progressos legislativos são hipócritas quando os comparamos às notícias de agressões.

A literatura sempre teve o papel de conversar conosco. Então, porque não permiti-la mostrar o que uma boa corrente da sociedade está tentando dizer há tempos? O óbvio: que os gays são simplesmente gays. Nada mais além disso. Que não há nada de errado, imoral ou qualquer outra coisa que as pessoas queiram pregar contra. Que a opção sexual de um indivíduo faz parte de sua identidade, e não há nada para ser ‘aceito’ ou ‘mal visto’.

Essa foi a premissa da coletânea A Fantástica Literatura Queer, publicada em dois volumes pela Tarja Editorial, pioneira no tema em solo brasileiro – mas também uma das primeiras a decidir tratar o tema da diversidade sexual dentro da literatura fantástica.

Li apenas o volume vermelho, por enquanto, e, de minha parte, posso dizer que li contos dos mais brilhantes em que já coloquei os olhos.
>> REVISTA FANTÁSTICA – por Carol Chiovatto


A LITERATURA FANTÁSTICA DO PARÁ: VICENTE CECIM E A VIAGEM A ANDARA

quarta-feira | 4 | janeiro | 2012

Há 32 anos, Andara emergia dos sonhos do escritor Vicente Franz Cecim. Uma região imaginária, que fez da Amazônia sua matéria-prima, uma floresta sagrada de águas, peixes, aves. Paraíso encantado onde tudo pode acontecer. “Árvores podem falar com os homens, aves que caem do céu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o vento vem nos contar histórias, tu podes te deparar com uma mulher alada.

Há muitos outros seres alados em Andara, talvez anjos ou sejam demônios, que descem do céu com suas asas negras, com suas asas brancas para conviver com os seres humanos”, descreve Cecim sobre sua terra enfeitiçada.

Andara fez sua primeira aparição em 1979, no livro “A Asa e a Serpente e Manifestos Curau”, publicação que inaugura “Viagem a Andara, o Livro Invisível”, obra fantasma, que vai tomando corpo à medida que são escritos cada um dos doze livros que até agora insurgiram da imaginária floresta de Cecim. “Quando os livros escritos de Andara tiverem deixado de existir um dia, a ‘Viagem a Andara, o Livro Invisível’ que não é escrito continuará existindo em sua existência de não-livro”, diz o autor, que relança sua primeira obra dentro do projeto “Orgulho de Ser do Pará”, do DIÁRIO, promovido pelo Grupo RBA de Comunicação.

“A Asa e a Serpente e Manifestos Curau” inaugurou um dos mergulhos mais abissais a uma Amazônia reinventada, rompendo a fronteira entre prosa e poesia, numa fusão entre o natural e o sobrenatural, o profano e o sagrado, para se lançar numa intensa busca metafísica do sentido do ser e da vida.

“Andara é lugar de sonhar, Andara é a imaginação em liberdade, Andara quer abolir a razão do ato de escrever. Andara é quase um manifesto prático contra a literatura regionalista, mimética, que geralmente se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade amazônica. Mas a realidade é oculta em si mesmo: se disfarça em sua epiderme.

Fazer literatura assim é ampliar o ilusório”, defende Vicente, que buscou nas memórias de infância o alimento de sua escrita.

“Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas, os mitos, que aprendi desde criança a admirar através da minha mãe, Yara Cecim, que nos contava, não os contos dos irmãos Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, mas umas histórias delirantes da região, para nos fazer dormir, a mim e aos meus irmãos. O sono vinha, mas como um portal de acesso a todo esse mundo feérico. Não sabíamos mais o que era natural e o que era sobrenatural”.

A literatura fantástica de Cecim arrebatou a crítica pelo país, e alcançou reconhecimento além mar. “Ò Serdespanto”, lançado em Lisboa em 2001, foi apontado como o segundo melhor livro do ano. Tempos antes, em 1980, Cecim recebeu o prêmio Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, por sua segunda obra, “Os animais da terra”. Em 1988, o

Grande Prêmio da Crítica da APCA, nessa década somente atribuído também a Hilda Hilst, Cora Coralina e Mário Quintana. Em 1994, “Silencioso como o Paraíso” foi aclamado pelo jornalista e crítico literário Leo Gilson Ribeiro como “um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos, encanto a que Guimarães Rosa chamava de ‘peregrinação álmica’”.

O crítico gaúcho Antônio Hohlfeldt, no Correio do Povo, também viu na escrita inventiva de Cecim aproximação com as palavras do autor mineiro. “Depois de Guimarães Rosa, o paraense Vicente Cecim é o responsável por um dos mergulhos mais fantásticos e essenciais que a literatura brasileira já realizou sobre o sentido do homem.” E Oscar D’Ambrosio, no Jornal de Tarde, de São Paulo, endossou o diálogo: “Ler Viagem a Andara é penetrar em narrativas poéticas subversivas e míticas que trazem à tona, sempre renovado, o aforismo roseano: Viver é perigoso.”

Cecim e Rosa como alquimistas em suas criações. “Minha escritura tem a mesma má intenção da de Guimarães Rosa: abolir as fronteiras artificialmente demarcadas entre a prosa e a poesia. Mas, talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Sertão a mesma coisa que eu estou tentando fazer com a Amazônia: transmudar, ele, o Sertão, eu, a Amazônia, no que eu chamo de regiões metáforas da vida”.
>> DIÁRIO DO PARÁ – da Redaçao


A LITERATURA FANTÁSTICA DO CEARÁ: O CRAVO ROXO DO DIABO

quarta-feira | 4 | janeiro | 2012

No ano passado, foi lançada em Fortaleza a antologia “O Cravo Roxo do Diabo”: o Conto Fantástico no Ceará”, organizada pelo escritor Pedro Salgueiro. A pesquisa durou três anos e resultou num rico acervo do gênero, revelando a prodigiosa criação dos escritores cearenses desde o século XIX, quando vieram a público as primeiras publicações de textos literários em nosso estado

A antologia “O Cravo Roxo do Diabo”: o Conto Fantástico no Ceará” é a primeira coletânea de contos fantásticos produzidos na terra de Alencar.

A ideia inicial era traçar apenas um panorama do conto, mas a pesquisa avultou-se e decidiu-se, além dos 172 contos selecionados, inserir dois apêndices, com 17 capítulos de romances e 60 poemas, compondo, assim, um panorama amplo do texto fantástico cearense produzido entre os séculos XIX e o XXI.

O volume da pesquisa fez necessária a participação de outros três nomes da nossa literatura: Sânzio de Azevedo, Alves de Aquino (Poeta de Meia Tigela) e Carlos Roberto Vasconcelos, o que resultou num livro de 674 páginas, cujo título foi tomado de empréstimo de um conto de Álvaro Martins, infelizmente não localizado pelos pesquisadores. A bela capa criada pelo escritor Raymundo Neto, bem como o trabalho gráfico da Expressão dão ao vultoso acervo o aspecto de obra definitiva. A istematização dos cânones do Fantástico passou por muitas revisões. A mais tradicional, de Todorov, no livro Introdução à literatura fantástica, assevera que ele se alicerça por meio da hesitação do leitor em ´aceitar´ ou não os fenômenos narrados, desde que tais fenômenos não predisponham uma leitura alegórica nem poética.

O enquadramento

O crítico estruturalista opõe, ainda, o que ele chama fantástico a outros dois conceitos fronteiriços: o estranho ou o maravilhoso; o fantástico ocupa o tempo da incerteza, da vacilação entre aceitar ou não o evento extranatural; assim que se escolhe uma resposta ou outra, o fantástico é abandonado e entra-se no domínio de um dos gêneros vizinhos: o estranho ou o maravilhoso. Nessa acepção, nem todos os textos aqui coletados estariam inseridos no gênero.

Tomando, entretanto, a concepção mais atual, de Ana María Barrenechea, que afirma a configuração do fenômeno em forma de problemas feitos a-normais, a-naturais ou irreales em contraste com factos reais, normais ou naturais, considera-se fantástico todo texto cujo enredo encene acontecimentos que transponham as leis naturais, ou seja, que coloquem em conflito o mundo empírico e o mundo fantasioso.

A Antologia

Na primeira parte da antologia, dedicada aos contos, constam 172 narrativas organizadas em ordem cronológica do ano de nascimento dos seus autores, tal como ocorre nos dois Apêndices. Todos os textos, embora focalizem o extranatural por procedimentos estéticos diferentes, inserem-se no que se denomina, hoje, literatura fantástica, numa acepção ampla do gênero, tomando-o, pois, como narrativas de mistérios que confrontam o racional e o irracional.

No Ceará, o primeiro conto fantástico de que se tem registro foi escrito por Juvenal Galeno. “Senhor das Caças” tem a mesma estrutura das narrativas de Álvares de Azevedo em Noite na Taverna: enquanto trabalham com a mandioca, num serão na farinhada, os sertanejos contam histórias de caiporas, aventuras de caçadas e encantamentos. São histórias dentro de uma história. Igual estrutura está no conto “Capitão Maciel, 3.ª companhia”, de Tomás Lopes, cujo enredo deixa claros seus desdobramentos: “Depois do jantar, na salinha do café, falava-se de casos estranhos, mistérios do além-túmulo. Cada um contava a sua história, todos, porém, afetando descrença, ceticismo, explicando tudo pela coincidência”, numa tentativa de racionalização que não impede o espanto quando se constata a aparição de um morto, motivo também presente em Cruz Filho (“A basílica”), cujo enredo comprova a presença da ex-escrava nas ruínas da igreja onde morreu. Florival Seraine, igualmente, em seu “Guajará”, coloca o insólito em contação de ´causos´ numa venda.

O realismo cearense foi prodigioso no espírito inventivo das narrativas fantásticas do início do século XIX. Duas representações significativas estão nas narrativas de Pápi Jr. (“A cruz-das-malvas”) e Oliveira Paiva (“O ar do vento, Ave-Maria”). No enredo do primeiro, há uma atmosfera propícia para o sobrenatural, na descrição esmerada da escuridão da noite impenetrável e compacta, corria-nos pela frente como um largo pano sujo de fuligem, em que aparece, na estrada, em frente à cruz-das-malvas, o fantasma da pessoa que lá foi enterrada. Na do segundo, a aparição de um monstro, no meio da noite, carregando a cabeça de uma mulher (fazendo, ainda, umas caretas horrorosas) para enterrar.

E vários motivos dão asas à criação do conto fantástico cearense, como as peripécias do capeta (“O dia aziago”, Lopes Filho), aparição de almas penadas (“Alma penada”, de Américo Facó), espectros (“Espectros”, Gustavo Barroso), visagens (“Junho é um mês que não tem fim”, de Batista de Lima). Histórias de pescador com aparição de sereias (“Sereias”, Herman Lima) ou botijas (“Uma história fantástica”, Martins d´Alvarez; “A botija”, Genoíno Sales e “A botija”, Lustosa da Costa).

Outras faces

Algumas vezes, não se configura nenhum fenômeno, tão somente a atmosfera de mistério estabelece a presença do extranatural ou seu prenúncio, como ocorre no conto “Casas mal-assombradas” de, Carlyle Martins (Numa visão macabra e sinistra, atestando a transitoriedade de uma vida de opulência e conforto, a velha casa, como que indiferente ao perpassar dos anos, ensombrada pelas mongubeiras sempre monótonas e sussurrantes, tinha as paredes carcomidas e cobertas de fendas./…/

Por seu aspecto aterrador, atestava ela a glória do passado distante, obscurecido pelas brumas dos tempos e demonstrando como a felicidade humana é incerta e passageira…) e em “A Oiticica”, de Otávio Lobo (Se alguém, rompendo o escuro, passa debaixo de alguma oiticica, sente arrepios de medo, pavor de visagens e, ainda, assombrações de almas do outro mundo).

Fique por dentro
A gênese do discurso

O gênero fantástico tem suas raízes nas histórias de deuses, fadas e feiticeiras da Antiguidade Clássica, mas se consolidou como estética a partir do Romantismo, com suas narrativas góticas. Como todo gênero, o Fantástico teve estabelecidos os seus cânones, continuamente fundamentados e revisados por teóricos como Roger Callois, Tzvetan Todorov, Irene Bessiérre, Louis Vax, Victor Bravo, Filipe Furtado, e, mais adiante, a filóloga argentina Ana María Barrenechea, entre outros. Mestres do Horror, como H.P. Lovercraft, E. T. A. Hoffman, Edgar Allan Poe e Teophile Gautier deixaram um legado para os amantes do sobrenatural e exerceram influências na ficção fantástica produzida em todo o mundo.
>> DIÁRIO DO NORDESTE – por Aíla Sampaio


A LITERATURA FANTÁSTICA DE GOIÁS: O SENHOR DOS DRAGÕES

quarta-feira | 4 | janeiro | 2012

Entrevista com o escritor goiano Itamar Pires Ribeiro, que – sete anos após o lançamento de “Histórias da Terra Vazia” – estreia no romance com “Lygia entre os Dragões”

Itamar Pires Ribeiro é um comunicador nato. Informa na condição de jornalista profissional, dialoga com as musas por meio da literatura e da música, apresenta o programa Constelações na Rádio Universitária de Goiânia, e é também um grande papista, capaz de fazer o assunto mais indigente render horas e horas de conversa e informações engraçadas e eruditas. Contista premiado, venceu a Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos de 1993, com “Contos de Solibur”. Em 2008 publicou o segundo volume de contos, “Histórias da Terra Vazia”.

Depois de sete anos de trabalho acaba de lançar “Lygia Entre os Dragões”, um romance histórico ambientado numa Goiânia de sonhos e sombras, no presente e no passado. Livro de linguagem experimental, Itamar Pires Ribeiro promove nele o diálogo entre a literatura, a música, a fotografia, HQs. Segue uma conversa sobre o presente e o passado com quem sabe falar; e escrever.

Pergunta – Você é um intelectual multifacetado: é escritor, compositor, jornalista, blogueiro, gestor cultural, apresenta um programa de rádio etc. É possível estabelecer uma conexão entre todas essas atividades? Qual a linha mestra de sua obra?
Itamar Pires Ribeiro – Todas essas atividades foram surgindo em decorrência da própria vida. A primeira, a principal opção é a literatura. Na literatura tenho trabalhos na área do conto, da crônica, do teatro, da poesia e agora do romance.

O trabalho na poesia propiciou um novo desdobramento: a construção de letras para músicas. As parcerias na área musical terminaram me levando à escrita, em parceria com Débora di Sá, do musical teatral “O Circo dos Amores Impossíveis”. O trabalho profissional que exerço no rádio, onde atualmente sou diretor de programação da Rádio Universitária, me permite uma grande proximidade diária com a música. Além das funções de direção mantenho dois programas diários — um na madrugada, Constelações, de meia noite às seis e outro de música erudita, Sala de Concertos. Ainda produzo dois outros programas no fim de semana, Clássicos do Rock e Um Jeito de Jazz.

O rádio veio como decorrência do curso e da profissão de Jornalista. Sou servidor da UFG desde 1980, época em que ingressei na Rádio Universitária. Na música eu tenho trabalhado com gente muito talentosa, meus parceiros Du Oliveira, Débora di Sá, Kan Kambai, Gustavo Veiga e Reny Cruvinel. Minha principal parceria hoje é com a cantora, compositora, atriz e circense – ou seja também um talento múltiplo – que é Débora di Sá. Ela tem uma das melhores vozes de Goiás além de uma presença de palco extraordinária. Já as atividades enquanto gestor cultural decorreram da atividade política, sou militante desde a primeira juventude, e olha que isso já tem tempo! Fui Secretário de Cultura de Goiânia, na gestão de Darci Accorsi, e diretor do Instituto Goiano do Livro, nos dois primeiros governos de Marconi Perillo. Já a atividade artística, e, principalmente, a literatura, essas não apenas surgiram na vida, para mim elas são partes essenciais da minha vida.

Eu descobri que não conseguiria viver sem a literatura lá pelos 16, 17 anos, quando resolvi me preparar para ser escritor, que é o que eu realmente queria fazer na vida. Para isso virei “rato de biblioteca”. Eu estudava no Colégio Pedro Gomes, que possuía uma boa biblioteca e fazia um curso com o qual eu pouco me identificava, era um curso de Química. A situação do ensino público naquela época era bastante conturbada, frequentemente não tínhamos todas as aulas previstas no dia, eu aproveitava aqueles momentos para ir para a biblioteca. Por sorte a parte literária da biblioteca era boa e a fome de leitura, enorme. Ali li as obras de Guimarães Rosa, Kafka, Proust, Clarice Lispector, Machado de Assis, Graciliano Ramos e tantos outros. Na UFG foi mais ou menos a mesma coisa, virei rato da biblioteca central, e também um assíduo frequentador dos sebos da Rua 4, no centro.

Outra decorrência do curso de Jornalismo foi a minha paixão pela fotografia, o curso de Química terminou servindo e muito na hora de executar o indispensável trabalho de laboratório, o qual, antes da fotografia digital, era absolutamente imprescindível. Através do Jornalismo também me envolvi com as artes gráficas. Comecei fazendo diagramações e artes finais numa gráfica clandestina que era do PCdoB, isso quando o partido ainda se achava na clandestinidade e vivíamos a miséria da ditadura militar.

Quanto à linha mestra da minha obra literária talvez seja a tentativa de, mantendo o realismo como lastro, exercitar sempre a imaginação, perceber os desvãos da realidade e explorá-los. “Lygia entre os dragões”, romance que estou lançado agora, é justamente isso: a fusão entre o realismo, que às vezes chega ao limite do hiper-realismo na descrição de lugares, cenas reais, memórias e personagens reais, com a imaginação que vivifica o real e descobre suas estranhezas. Outra das minhas preocupações literárias é escrever sobre aquilo que conheço a fundo, por isso as minhas obras literárias mais recentes tem todas como cenário a cidade de Goiânia. Imaginação e realismo, talvez seja essa síntese. A literatura fantástica surge como um instrumento para aprofundar o conhecimento da realidade e não como um valor por si só.

Pergunta – Sua passagem pela diretoria do Instituto Goiano do Livro (IGL), entre 2000 e 2004, foi marcada por uma melhora substância na qualidade gráfica e editorial dos livros lançados via poder público em Goiás. É possível resumir como se deu esse processo?
Itamar – Eu assumi o IGL em meados de 2000. O Instituto Goiano do Livro passava por um processo de reestruturação e vivificação empreendido pela escritora Yêda Schmaltz. Por motivos particulares Yêda deixou a direção do IGL e eu assumi sua condução. A AGEPEL dispunha de uma direção muito ativa, que apoiava as iniciativas inovadoras, destaco nesse ponto o papel de Nasr Chaul e de José Eduardo Morais.

Na gestão de Yêda haviam sido criadas várias coleções literárias, que abrangiam praticamente todos os gêneros literários — ficção, poesia, ensaio, teatro, literatura infantil e infanto-juvenil — foi também criado um Conselho Editorial, que era formado por representantes da UFG, UCG, das academias, da UBE, ou seja um conselho aberto para a sociedade e muito qualificado. Quando assumi a direção já haviam sido selecionados os livros que integrariam as coleções literárias de 1999 e as obras vencedoras da Bolsa de Publicações Cora Coralina, totalizando 19 livros. Destes apenas parte da tiragem de um livro de Marieta Telles havia sido publicada, todos os outros ainda estavam em processo de finalização ou embaralhados pela burocracia. Ao longo do ano de 2000 realizamos a seleção de novas obras literárias e finalizamos o processo de publicação, com algumas reformas no formato de algumas coleções e terminamos por lançar as coleções de 1999 e 2000 em novembro de 2000.

Durante minha passagem pelo IGL nós buscamos aperfeiçoar o processo de seleção pública dos livros a serem publicados, com a edição dos editais de seleção para as coleções, tornando isso o mais transparente possível, e também qualificar o aspecto gráfico, editorial das produções. Eu contei com a ajuda inestimável de Ciça Fittipaldi, que é uma grande profissional da área editorial e que nós contratamos para colaborar na definição dos padrões de qualidade gráfica e editorial de todos os livros publicados. Cada coleção tinha uma identidade própria, mas que não se sobrepunha à individualidade do livro, da obra concreta a ser editada. Fui o responsável pelo projeto gráfico de 32 dos 51 livros que lançamos durante minha passagem pelo IGL, li cada um deles e preparei suas capas e seu projeto de miolo.

A experiência como Jornalista foi fundamental. A passagem pelo IGL me mostrou como é rica a produção literária em Goiás e como é necessário ter instrumentos para dar vazão a toda essa produção. Nos três anos que passei à frente daquele órgão publicamos 51 títulos, e esses foram rigorosamente selecionados a partir de, pelo menos, 2500 obras inéditas que foram submetidas a julgamento. Tive o prazer de publicar 27 escritores inéditos, inclusive o seu primeiro romance “Hirundo Medicinalis”. Infelizmente o trabalho do IGL não teve continuidade e hoje aquele instrumento encontra-se desativado. A Bolsa de Publicações Cora Coralina, de tanta tradição, também se encontra desativada, é uma pena.

Hoje temos publicação de obras literárias através das coleções da Secretaria Municipal de Cultura e através das leis de incentivo estadual e municipal — pela qual inclusive “Lygia Entre os Dragões” está sendo publicada. São mecanismos importantes mas vejo que é necessário, por exemplo, criar espaços para a seleção rigorosa e a publicação dos autores inéditos, como fizemos no IGL, isso valoriza o novo autor e ajuda a projetá-lo e consolidar sua vocação.

Pergunta
 – Seu livro “Contos de Solibur” foi premiado com a Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, em 1993. Acredito que o tom da obra, marcado pela erudição e fantasia, remete diretamente a dois mestres: Jorge Luis Borges e J. R. R. Tolkien. Pensando um pouco na Terra Média e no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, podemos afirmar que você almejou “construir um mundo” ao criar Solibur de maneira tão complexa, com história, geografia, lendas e tradições?
Itamar – A ideia de criar um mundo sempre me fascinou. Aos 19 anos, quando li justamente “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” de Borges me senti meio roubado: puxa, olha aí o que eu queria fazer! Depois, em 1982, li uma edição incrivelmente ruim do “Senhor dos Anéis”, de Tolkien, aí sim caiu a ficha: a criação do mundo já havia sido realizada! Ora pois! Então o que fazer: recriá-lo, era a questão óbvia. “Contos de Solibur” insinua essa existência paralela, de um mundo, um universo, uma realidade que tem condutos de comunicação com a nossa do dia-a-dia, que nela interfere, que sobre ela se realiza e desdobra. A mesma temática está presente também em meu segundo livro de contos “Histórias da Terra Vazia”, de 2008, e também no atual “Lygia Entre os Dragões”.

A diferença é que na primeira obra eu ainda não tinha situado claramente os cenários em que as histórias se desdobram, poderia ser em qualquer lugar, mas tanto em “Terra Vazia”, quanto em “Lygia” o cenário é esse mesmo em que vivemos: a cidade de Goiânia. O Edival Lourenço escreveu o prefácio de meu romance e caracterizou bem um de seus elementos: os labirintos desapercebidos. Vivemos uma realidade muito mais complexa que o ramerrão do dia-a-dia, somente não nos damos ao trabalho de percebê-la em profundidade e esse é o campo da literatura. Borges diz em algum de seus contos, e talvez, borgianamente, eu esteja inventando isso, que Deus só pode criar o paraíso e que nós é que não nos percebemos estar no paraíso.

Esse é aliás um dos temas, uma das perguntas de “Lygia Entre os Dragões”: será que nossa liberdade, enquanto seres humanos, se reduz a não ver a plenitude do universo, do paraíso, como queiram, e ir edificando, pedra a pedra, crime a crime, outra coisa senão o inferno? A edificação do inferno é a obra da humanidade? Não creio nesse tipo de fatalismo, mas a questão da liberdade humana e da responsabilidade humana por todos seus atos é fundamental para a edificação de uma ética que se baseie na liberdade e não coação ou em promessas de um futuro paradisíaco.

Pergunta – Você é membro fundador de duas academias de letras, a Aparecidense e a Goianiense. Na primeira ocupa a cadeira número 2, cujo patrono é o poeta Afonso Félix de Sousa. Na Academia Goianiense sua cadeira é a 26, patroneada por José J. Veiga. É o acadêmico-fundador que indica o patrono? Se sim, qual sua relação com as obras desses autores?
Itamar – Afonso Félix de Sousa é um poeta ao qual admiro muito. Vigoroso, com veio político e forte reflexão passional, já José J. Veiga é um escritor com o qual me identifico muito. A fusão do fantástico com a realidade que ele fazia é, em certo sentido, a mesma que me proponho a fazer. O cenário muda totalmente: ele trabalhava a ambientação da pequena cidade do interior, do campo; eu, que não tenho nenhuma vivência naquele tipo de realidade, situo minha ficção na grande cidade, no ambiente puramente urbano. Veiga, Miguel Jorge e Heleno Godoy estão entre os prosadores goianos com os quais mais me identifico.

Pergunta – A fundação da Academia Goianiense de Letras em 2005, a despeito de uma tentativa de instituí-la na década de 1970, causou polêmica. O motivo seria porque misturava escritores conhecidos com pessoas consideradas diletantes. Tendo passado mais de cinco anos, como estão os trabalhos da AGnL?
Itamar – Atualmente a AGnL é presidida por uma pessoa extremamente capaz e dinâmica que é a escritora Malu Ribeiro. Ela já conseguiu uma sede própria, mantém um site bem elaborado de divulgação da Academia e tem desenvolvido todo um esforço para consolidar definitivamente aquela instituição. É uma instituição que tende a crescer e a se tornar relevante para a cultura em Goiás, é claro que isso vai depender dos projetos que venha a desenvolver, mas vejo o quadro com otimismo.

Pergunta – Você está lançando o romance “Lygia Entre os Dragões”. Trata-se de um romance histórico estilizado. A narrativa não é linear e o cenário é a cidade de Goiânia, do presente e do passado recente, destacando-se a luta pela redemocratização. Afora a pesquisa histórica que realizou, existe algum resquício autobiográfico no livro? Suas memórias pessoais, suas lembranças de adolescente, ajudaram na composição do texto?
Itamar – As paixões ajudaram muito. A paixão pela fotografia, que está no núcleo de uma das histórias; a paixão pelos livros, pela música, pelos cenários da cidade de Goiânia. Como você disse são vários planos narrativos que se intercalam e vão construindo o texto. Miguel Jorge, grande amigo e crítico arguto, escreveu a orelha de “Lygia Entre os Dragões” e observou que seus capítulos se estruturam quase como ensaios autônomos que tem um personagem como centro.

O primeiro plano narrativo se passa nos dias atuais, caso alguém faça as contas verá que decorrem exatamente 40 dias do início da ação até seu desfecho. Esse plano é dominado pela busca por uma explicação para alguns objetos inusitados que são encontrados pelo personagem que narra todo o livro, Alberto Alves, e tudo se move por outra busca, mas profunda e terrível: a tentativa de compreender o suicídio da mulher amada. Outros planos narrativos se desdobram na memória. Há também cenários da Goiânia dos anos 50 e 60.

Algumas das principais ações se dão no momento do lusco-fusco da ditadura militar, em 1979, quando a anistia já trouxera de volta os exilados e libertará os presos políticos, mas quando os grupos de extrema direita ainda se aventuravam em atentados e ações para apagar seus rastos. Há planos narrativos que se desenvolvem inteiramente naquela outra realidade, paralela ou alternativa, como queiram, e cuja influência é tremenda em todos os outros planos. Inevitavelmente usei todo o arsenal da memória pessoal da era final da ditadura, e também busquei muita colaboração de gente que viveu em Goiânia nos anos 50. Uma pessoa importante nesse sentido foi meu grande amigo Eduardo Benfica, que faleceu em 2006. Benfica terminou virando personagem do romance, ele achou graça quando mostrei o trecho em que ele aparece, e graças a Benfica fiquei sabendo qual era exatamente a aparência do ilustre fotógrafo Jean Luc Carpentier, um borgiano pioneiro da fotografia da jovem capital.

Pergunta – Seu estilo prima pela exatidão. Mesmo seu texto estando longe de ser seco, minimalista, como o de um Graciliano Ramos ou Hemingway, as palavras parecem contadas, nada é por acaso. “Lygia Entre os Dragões” é resultado de sete anos de trabalho. Como é seu processo criativo? Reescreve diversas vezes uma mesma página? O enredo está definido quando começa a escrever ou ele sofre mudanças ao longo do processo?
Itamar- “Lygia Entre os Dragões” foi durante anos um conto, mas nunca fiquei satisfeito com aquela condição. Parecia sempre que havia muito mais coisa, que a forma conto não consegue abranger. Suas primeiras versões são do início dos anos 90, depois de muita teima resolvi, em 2004, que não havia outro jeito de enfrentar aquele material senão sob a forma de um romance.
Como eu já tinha definido o rumo geral do romance passei a trabalhar da única forma que me foi possível fazer: através do acúmulo de fragmentos. Uma frase, um trecho, o esboço de um personagem, uma intuição: anotava tudo, transformava aquilo em um fragmento que recebia um número de série para ser depois revisitado, repensado e reescrito. A linha geral era clara, mas seu desenvolvimento completo não, quis manter sempre essa abertura, não planejar demais, não saber demais sobre a história antes que ela se realizasse em sua forma definitiva. Isso permitiu “encontrar” alguns personagens fundamentais: Hanna surgiu de um fragmento desses, e mesmo o Doutor Aquiles veio quase pronto em outro fragmento. A Lygia que dá título ao romance foi a mais fugidia de todos os personagens, não foi fácil caçá-la, apreendê-la.

É claro que um método de construção como este, que se baseia no fragmento e que tem permanentemente aberta a porta da intuição, demanda muito tempo para se consolidar em um texto coerente. Terminei a primeira redação geral deste romance em 2007. Deixei-o descansar por quase todo aquele ano e fui retomar seu trabalho em 2008. Já não era o momento nem dos fragmentos e nem da intuição, trabalhos a quente, mas da racional construção dos vínculos, da estruturação definitiva das partes, da revisão cuidadosa da escrita. Escrever para mim é quase sempre reescrever, sinto um grande prazer em ir explorando um texto, percebendo suas falhas, seus desvãos, suas possibilidades, por isso escrevo lentamente, senão, não tem graça.

P ergunta– “Lygia Entre os Dragões” é um romance, digamos, multimídia. Histórias em Quadrinhos, imagens trabalhadas em computador e mesmo músicas são parte fundamental de sua estrutura narrativa. Você acredita que tais estratégias, que deram outras dimensões ao texto, retirando-o da página impressa, podem ajudar a redefinir o gênero romance para o século 21? Ou pelo contrário, foram elementos explorados exclusivamente nessa obra, não devendo ser estendidos como uma proposta de tendência?

Itamar – “Lygia Entre os Dragões” bebe em muitas fontes de inspiração. Vamos achar reflexões sobre o mal, que tem antecedentes em Santo Agostinho, e também citações da saga de “Jornada nas Estrelas”, a música de Astor Piazzolla e Chico Buarque, nesse sentido é um romance “pop”. Mas não sei se esse é um nome ou definição dos mais apropriados, é também um romance fantástico, histórico, existencial, é mais um romance de “integração”. As fontes são as mais diversas possíveis, da lenda folclórica, à descrição técnica de batalhas, de processos químicos da fotografia, mas tudo serve ao propósito de inteireza do texto.

A música é uma fonte de ritmos narrativos, de climas, de evocação de memórias, de instigamento para que, se o leitor não conhecer aquela peça, que venha a conhecê-la. Isso pode ser sim uma tendência? Não sei. O fato é que hoje em dia não se pode ignorar tudo o que podemos pesquisar pela internet, tudo o que podemos ter de informação quase que instantânea, são elementos, assim como os da cultura “pop”, que podem ser usados no romance, mas não creio que isso seja o fundamental para a literatura. O romance usa esses “traços circunstanciais exigidos pelo leitor moderno” (Borges), como um recurso para capturar alguma coisa que caracteriza esse nosso tempo. Enquanto escritores estamos presos a nosso tempo, mesmo que construindo romances de ficção histórica. A literatura é um fenômeno do tempo histórico e talvez somente ela seja capaz de decifrá-lo em profundidade.

Pergunta – “Lygia Entre os Dragões” é, nitidamente, o trabalho de um autor que conhece as estruturas teóricas da produção do romance, um estudioso da estética literária. Como trazer o conhecimento erudito, quiçá acadêmico, para a produção da obra de arte?
Itamar– A teoria literária, o conhecimento da história da literatura e de suas escolas tudo isso é parte da formação básica do escritor. Não se pode ser ingênuo na literatura. É dever do escritor conhecer seu ofício, como é dever do pintor dominar sua arte, ou do cineasta, do músico. O conhecimento teórico supre bases profundas para o trabalho literário, mas evidentemente não basta para sua realização, a obra de arte é produto múltiplo do conhecimento, da razão, como queiram, e do inconsciente, Palas Athena e Orfeu.

Pergunta – Os dragões são criaturas que assombram o imaginário da humanidade. Podem ser tanto um símbolo positivo, como os dragões elementais do Oriente, quanto negativo, como as bestas mortíferas que herdamos do Ocidente medieval. É correto afirmar que seus dragões provêem de uma reconfiguração do inconsciente coletivo a partir dessa imagem dúbia?
Itamar – Os dragões são para mim um símbolo dialético no qual se unem a representação ocidental do mal consumado e a representação oriental da sabedoria e da força viva. Lygia, a personagem, é, nesse sentido, um genuíno dragão. Não é um personagem-vítima: mulher, jovem, negra, com um destino cruel a cumprir, mas uma força que move todo o romance em seu giro. Os dragões do título vieram já no primeiríssimo momento de construção daquele texto, ainda em sua origem como conto.

Durante o romance são uma representação gráfica, um carimbo de identificação, uma criatura que se aproxima, alguma coisa que não se entende, um desvão. É evidente que ao usar um símbolo de tanta força sempre pagamos o preço devido a seu ancestral uso e abuso, se puder acrescentar uma nuance a mais: o dragão como imagem do tempo que ao mesmo que voa e devora se mantém incólume nas chamas que são ele mesmo, dou-me por muito satisfeito.

>> VERMELHO – por Ademir Luiz 
(entrevista ao Jornal Opção, de Goiânia. Publicada aqui com pequenas mudanças feitas pela redação do Vermelho)


LYGIA ENTRE DRAGÕES
(Trecho de abertura do romance)

“Desde então ela enviava sinais, insinuava sua aproximação, o que, enfim, nos consumiria, mas eu era surdo e cego. Os três cadernos foram um prenúncio, que, como acontece com a maior parte dos prenúncios, só são entendidos depois, muito depois. A morte de Hanna ocupou todo o tempo e o espaço disponível, alongou por uma sensação de meses e anos o que foram dias e semanas, restou provada para mim a estranha afirmação da física de que o tempo depende de seu observador. Para mim ficou claro que o tempo depende da agonia.

De Hanna sobraram as fotos, um atestado de óbito em nome de Hanna Eleanor Rigby de Souza, que nasceu e assim foi registrada e batizada aos 25 dias do mês de abril do ano da graça de 1974, o dia da Revolução dos Cravos, “Grândola vila morena Terra da fraternidade O povo é quem mais ordena Dentro de ti ó cidade”. Filha de um pai doido pelos Beatles e por Chaplin, e uma mãe que um pouco se parecia com ela, em tudo uma versão menor e mais tranquila, durável, persistente, terrível, uma canária filha de uma coruja. O fogo gelado dos olhos castanhos de Hanna, nunca mais. “Dentro de ti ó cidade”, enquanto no Brasil se consumia o esgoto escuro da ditadura “que há de durar para além do ano 2000”, se lascando, se fodendo de verde-e-amarelo. Ela nascia, abria o duplo farol de fogo gelado, o fogo castanho dos olhos, que talvez ainda não queimasse como queimara, tanto, tanto.

Nunca mais. Nunca mais a voz grave e, pela manhã, rouca, o riso, e a vontade de voltar para o balé: não. Sonhando com o brilho sobre os palcos, sonhando: não. E nenhuma outra daquelas filmagens bobocas, que consumiam fitas intermináveis de VHS, as quais nem ela tinha paciência para ver. As crises de choro. As agonias. O silêncio espreitando e armado com facas, garras, presas, armadilhas que estalavam em frases curtas e frias, que faziam o exato estrago necessário — não mais. Hanna Eleanor Rigby — ela e todos os solitários, os incuravelmente sós — nunca mais. Never more, dizia o corvo, never more. Pouca gente no enterro, recolhi duas pétalas de rosa, guardei-as no bolsinho da calça — o arroz de um casamento alheio. Adeus. Hanna Eleanor Rigby de Souza, 33 anos, matou-se de medo e silêncio. Um tiro, direto, na cabeça, e que, no entanto, se desviou, ricocheteando e foi se alojar numa posição inoperável, fundo, bem fundo no cérebro, apenas por um capricho sádico da natureza.”

Itamar Pires Ribeiro, goiano, é escritor, poeta e jornalista profissional. Foi Secretário de Cultura de Goiânia e um dos criadores do Fórum Goiano Sobre Cultura; dirigiu Instituto Goiano do Livro (2000-2004); produz e apresenta o programa Constelações, Rádio Universitária, onde produz e apresenta o programa musical Constelações. Como letrista, tem parcerias com Débora di Sá, Du Oliveira, Reny Cruvinel, Gustavo Veiga e Kan Kambay.


ESPECULANDO O RETROFUTURISMO DE 2012

terça-feira | 3 | janeiro | 2012

“Turning here, looking back in time”

logos sociais 2011 foi um ano dificílimo e complexo de ser apreendido por uma só ótica. Mobilizações e manifestações de cunho político, social, econômico, cultural, etc (ok, não é possível traçar linhas entre essas categorias ou tampouco delineá-las dados os embates de interesses cada vez maiores) através dos sites de redes sociais ganharam novos contornos e pautaram a mídia de referência (ou massiva ou mainstream, whatever). As guerras entre fandoms de gêneros musicais, bandas ou artistas; o ativismo político foi tudo trend topic. A rua e a tecnologia estiveram cada vez mais entrelaçadas através do fluxo de postagens e produção de conteúdos disponibilizados via celulares, tablets e dispositivos móveis em geral.

Ao contrário das previsões de alguns catastróficos, os blogs não morreram. Eles ganharam outras apropriações, voltadas a nichos cada vez mais específicos e se integraram à circulação e à re-circulação através de práticas como a da re-blogagem. Eis ai o excesso cognitivo e o destaque que o Tumblr ganhou nesse ano, sobretudo no que diz respeito à velocidade do humor e dos memes que “contagiaram” boa parte do que foi postado, sobretudo no Facebook e no Twitter. Curtir, retuitar, timeline, o vocabulário da computação social popularizou de tal forma que esteve presente nos mais diversos lugares como salões de beleza, almoços de família e discussões de bares. O excesso de conteúdo também nos deu momentos de estresse informacional por vezes divertidos e sociais  – como na cobertura de eventos como o Rock in Rio por exemplo – por vezes estúpidos em casos de racismo, homofobia, discriminação, etc. Tudo isso tem muito menos a ver com as plataformas e suas materialidades, mas com as misérias da humanidade. Contudo, O silêncio e a desconexão também são necessários.

Desde sempre visualizei o entrelaçamento dos ambientes, conteúdos, emoções, pessoas, mas em 2011 ficou tudo muito mais explícito com tantos aplicativos que congelam momentos da vida ou nos dão pistas e tracejados dos caminhos escolhidos. A instagramização da vida cotidiana; os amigos encontrados via geolocalização e a constante vigilância 4squareana do todos vêem, todos sabem; os angry birds da vida presencial nos atirando pedras a cada erro. A música e os videoclipes continuaram fluindo através do YouTube e seus comerciais insuportáveis; pelas nuvens cada vez mais populares do SoundCloud e o “modelão” de negócios do iTunes chegou ao final do ano no Brasil. A tensão entre o comércio,  as estratégias de marketing e as liberdades e anonimatos entraram em disputa várias vezes.

ABC

Em termos de cultura pop, 2011 apostou no revival, sobretudo tirando o mofo das camisas xadrezes e coturnos do grunge dos armários e guarda-roupas com os 20 anos de Nevermind, o retorno do Foo Fighters – com um álbum declaradamente nostálgico, Wasting Light – as referências em seriados (como Californication e outros) e filmes. O álbum tributo à Achtung Baby do U2 (1991) fechou um círculo de influenciáveis e influenciados com o Garbage do Butch Vig, o NIN de Trent Reznor e o eterno Depeche Mode (também produzido por Flood em Violator, outro grande álbum noventista).O dubstep virou pop e deu vida aos remixes de Justin Biber a Katy Perry, e o witch-house assombrou a música eletrônica.

A fantasia, ainda bem, retornou em grande estilo ao horário nobre da televisão com Game of Thrones sendo disparado o melhor seriado do ano (na minha opinião, claro). O horror e a bizarrice neo-gótica da América do Norte também teve seu espaço com American Horror Story oscilando entre o riso nervoso e o surrealismo fetichista. O retrô das mais variadas épocas deu a tônica em muitos momentos de 2011. Nunca se falou tanto nas redes  sobre as mais diversas épocas: o neovitorianismo steampunk; o fantástico medieval; os anos 90 nas festas e produções musicais. Até a realeza britância deu os ares de sua graça transformando novamente o ritual de um casamento real em um espetáculo global televisionado ao vivo, tuitado, blogado, etc. A curadoria de informações é um instrumento metodológico cada vez mais relevante, vejam só.

Não tenho bola de cristal, sou apenas uma pesquisadora das culturas emergentes, embora tenha os dons “cayce pollardianos de mediunidade semiótica coolhunting das ruas” (Fabio Fernandes All Rights Reserved). Especulo a partir de todo esse Zeitgeist – no sentido da especulação utilizado pela ficção-científica – que esse iníciozinho dos anos 10 (que começa com mais força agora em 2012) vai ser muito pautado por essa ambivalência experimental de sensações de tempo e espaço. Ainda estamos nos acostumando, enquanto sociedade, a nos apropriar dos meios, a nos estender tecno-social e materialmente pelos territórios, a compreender nossos corpos, desejos, sentimentos e pensamentos dentro desse contexto (re)mediado full-time, o que não é nada fácil, dai o apelo tão forte da nostalgia na construção de um futuro em constante conexão. E é nesse ponto que uma (an)arqueologia midiática se torna tão rica para observamos o presente e vislumbres do futuro dos artefatos e suas trajetórias narrativas, que contam cada um do seu jeito, nossas histórias/estórias.

Nesse sentido, desejo um 2012 repleto de narrativas, de grandes conquistas, de prazeres diários. “Celebrate the life and times of splendor” diz o VNV Nation em Space & Time, uma das melhores faixas de Automatic (2011), não por acaso um álbum conceitual acerca das tecnologias e estéticas dos anos 30, retrô-futurismo indicando até mesmo minha última songpost do ano. Em 2012, mais Victories Not Vengeances!
>> AS PALAVRAS E AS COISAS – por Adriana Amaral

Space & Time

VNV Nation

Tear apart the life and times of familiar faces
And tracing lines to what connects me and binds me to
Images of the remote and never-changing
Grand designs, style and grace
And am i

Lost in thoughts on open seas
Let the currents carry me
If i could would i remain
Another life or another dream

No turning back, face the fact
I am lost in space and time
Turning here, looking back in time

One and all let us celebrate the rise and fall
Celebrate the life and times of splendor
Desire and love constant and never-changing
The flow of times, closed in lines
Can’t tell if i’m just

Lost in thoughts on open seas
Let the currents carry me
If i could would i remain
Another life or another dream

No turning back, face the fact
I am lost in space and time
Turning here, looking back in time


BLIND GUARDIAN E A LITERATURA FANTÁSTICA

terça-feira | 3 | janeiro | 2012

Que a literatura serviu e ainda serve de inspiração para muitos letristas da música pesada não é nenhuma novidade. Que a banda alemã Blind Guardian é uma das bandas que mais bebem dessa fonte também não. Porém, ainda há aqueles que desconhecem as origens de algumas das letras dos alemães. Por uma questão de espaço comentarei um número limitado dessas obras.

O escritor mais influente para Hansi Kursh e sua trupe é J. R. R. Tolkien. A banda já prestou homenagem ao escritor inglês em seu primeiro álbum, Battalions of Fear, nas músicas Majesty e nas duas instrumentais, By the Gates of Moria e Gandalf’s Rebirth. No disco Tales from the Twilight World também podemos encontrar mais referências ao Professor Tolkien: a óbvia Lord of the Rings, e a mais sutil Lost in the Twilght Hall onde se pode interpretar a letra como descrevendo os pensamentos de Gandalf após derrotar o Balrog de Morgoth nas profundezas de Moria.

Contudo, o álbum mais complexo inspirado por uma obra de Tolkien é Nightfall in Middle-Earth baseado nos acontecimentos descritos n’O Silmarillion, livro póstumo do professor, editado pelo seu filho, Christopher Tolkien. Apesar de o livro descrever a criação do mundo, o surgimento dos elfos e dos homens, até o final da primeira era do mundo, quando Morgoth o Senhor do Escuro é derrotado e aprisionado pelos Valar, sobre a queda da ilha de Númenor e sobre Sauron, o novo Senhor do Escuro e a criação dos anéis de poder, o disco se concentra na parte principal que é a História das Silmarils. Assunto extenso e complexo para ser tratado em espaço tão pequeno, mas o Silmarillion é altamente recomendável àqueles que querem saber mais sobre os acontecimentos que antecederam o primeiro encontro de Bilbo e Gollum e o que isso acarretou ao longo do Senhor dos Anéis.

Outra música que merece destaque é War of the Thrones, do mais recente disco At the Edge of Time. Música é baseada no primeiro volume ­– a Guerra dos Tronos – das Crônicas de Fogo e Gelo do escritor americano George R. R. Martin, considerado pela imprensa como o Tolkien americano (o que para este humilde leitor que vos escreve é um exagero; um, porque a obra de Martin não tem semelhança alguma com as obras de Tolkien; dois, porque Tolkien foi o primeiro e seu estilo é único; e três, porque Martin é um excelente escritor por seus próprios méritos e não precisa desse tipo de comparação.) Os livros são um prato cheio para os fãs de fantasia, cheios de reviravoltas, batalhas, intrigas, etc. Outra música do mesmo álbum baseada na Guerra dos Tronos é o primeiro single do disco, A Voice in the Dark. Não escreverei detalhes sobre a letra, pois ela trata de um evento muito importante, portanto não irei entregar o ouro para quem não leu o livro ainda.

Voltando ao álbum Batallions of Fear encontramos a música Guardian of the Blind, inspirada no livro A Coisa do mestre do horror Stephen King. Um dos meus livros favoritos do escritor americano, a estória gira em torno de amigos que foram atormentados por um palhaço chamado Parcimomioso quando crianças e que já adultos têm que reviver o pesadelo de sua infância. A série de ficção científica Eternal Champion, de Michael Moorcock foi usada como inspiração para a faixa Quest for Tanelorn do álbum Somewhere far Beyond, e em Tanelorn (into the void), no álbum At the Edge of Time.

As referências são inúmeras. Ao longo de sua discografia, muitas músicas do quarteto alemão foram inspiradas pela literatura fantástica, seja ela fantasia, ficção científica ou horror. Seja qual for a sua preferência, corra atrás das obras (algumas delas não foram publicadas em português, mas aí há uma oportunidade para você praticar seu inglês), coloque os discos para rodar e aproveite a viagem.
>> DIE HARD – por Eduardo Barcelona Alves

Do álbum At The Edge of Time (2010) ouça a música “War of the Thrones”:


“VIKINGS”: SÉRIE SOBRE OS GUERREIROS NÓRDICOS PELA MGM E OS PRODUTORES DE “TUDORS”

terça-feira | 3 | janeiro | 2012

Programa terá dez episódios e
deve começar a ser gravado neste ano

vikingsAs séries de TV com enfoques medievais continuam em alta com o sucesso de Game of Thrones. Segundo o Deadline, E a ex-falida MGM anunciou que vai produzir junto com os produtores de Os Tudors e Camelot, uma série sobre vikings, os guerreiros nórdicos famosos por suas embarcações, longas tranças, capacetes com chifres e muita destruição.

A ideia de Vikings (título provisório) veio de Sherry Marsh, que a levou para Alan Gasmer. Os dois apresentaram o projeto à MGM TV, que então sugeriu a co-produção internacional de Morgan O’Sullivan, que por sua vez ligou para o seu colaborador habitual e historiador Michael Hirst. Hirts foi o criador de Os Tudors e coproduziu Camelot ao lado de O’Sullivan. Hirst é fanático pela cultura viking e tem um roteiro jamais filmado sobre os bárbaros, por isso já está trabalhando em uma bíblia para a série e deve também escrever a maioria (ou todos) os roteiros. (São deles todos os roteiros de Os Tudors.)

A série vai mostrar os Vikings como exploradores, guerreiros, construtores, mercadores, piratas e mercenários, entre o fim do século 8 e meados do século 11, época conhecida como A Era Escandinava, nas histórias britânica e irlandesa. O personagem principal será Ragnar Lodbrok, um dos mais populares heróis vikings, grande comandante que governou por um tempo a Dinamarca e Suécia e teve relacionamentos com duas mulheres guerreiras e uma rainha.

A produção dos dez episódios da primeira temporada da série deve começar na Irlanda, nos estúdios de Morgan O’Sullivan. A MGM vai financiar 100% dos custos fora do Canadá e Irlanda e distribuirá a série tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo.
>> OMELETE – por Marcelo Forlani


LITERATURA FANTÁSTICA BRASILEIRA

terça-feira | 3 | janeiro | 2012

Vector light renderSe aquilo que escrevemos é oriundo do imaginário, o fantástico é fruto dos sonhos. Isso coloca a literatura fantástica brasileira como tendo uma gênese semionírica tinta de verde e amarelo.

Seria querer fechar os olhos a quem nos traz um legado tão importante dizer que o gênero fantástico no Brasil é algo que nasceu nas últimas décadas. Lembro-me de quando li Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, ainda na adolescência: ignorar que seja literatura fantástica (chamar de quê? realismo criativo? histórias pseudorreais sanguinolentas? ultra-romantismo?) é querer negar que em 1855 um brasileiro, mesmo que postumamente, teve sua narrativa fantástica publicada.

Não podemos querer usar eufemismos aqui, como bem aponta Nilto Maciel, na revista de contos Bestiário: não se trata do maravilhoso, do sobrenatural aceito, do hiperbólico, exótico ou mesmo estranho ou grotesco. Existe alguma razão prática para se negar que se produz literatura fantástica no Brasil? Por ser uma literatura de entretenimento deve-se colocá-la num patamar menor, como se fosse uma pequena arte? – isso se for considerada arte…

Temos, sim, autores de literatura fantástica. Escrevemos histórias maravilhosas e exóticas e estranhas e até mesmo grotescas, mas tudo isso é apenas a manifestação do fantástico. Seja carregado de simbolismo ou tão direto quanto o autor deseje, é assim que se produz a literatura fantástica brasileira.

É claro que há expoentes lá fora: Tolkien, Martin, Rowling, Poe, Le Guin… Mas não ofusquemos nossos olhos ao ver o brilho que trazem sem ousarmos conhecer o quão brilhantes são nossos autores. Temos obras tão profundas, e tão divertidas, quanto as que são traduzidas… Muitas delas na estante da livraria próxima da sua casa ou apenas a um clique de distância em lojas virtuais. Mas existem barreiras para se conhecer tais livros?

Ainda existem. Às vezes parece que o que se escreve em território nacional não é visto com bons olhos. Dizem que é problema de preconceito… Eu, contudo, acredito que seja apenas falta de divulgação.

Como já disse em outros momentos, se o leitor não sabe que a obra está à venda, é como se ela não tivesse sido escrita: ninguém lê o que não sabe que existe. Felizmente existem iniciativas como o Fantasticon que primam pela divulgação e fortalecimento da literatura fantástica brasileira. É uma estrada longa a ser percorrida, mas já estamos dando os primeiros passos.

Para que ajudemos esse gênero fantástico que tanto amamos a crescer, basta quatro simples passos, que consolido como princípio EDEN (afinal, o Paraíso é também um lugar fantástico, não?):

  • Escrever
  • Divulgar
  • Enfrentar
  • Nobilitar

Os autores nacionais de literatura fantástica devem Escrever sempre, aprimorando suas técnicas de narrativa, buscando inspiração e colocando no papel o melhor que puderem. É preciso ter obras de qualidade para que se busque o reconhecimento (que vem, naturalmente, com o tempo).

Leitores, autores e editores devem Divulgar a literatura fantástica brasileira. Gosta de um livro? Faça uma resenha, recomende para um amigo… Ou melhor: dê livros de presente. Editores que apoiam seus autores e buscam estar presente em eventos literários também são ferramentas inestimáveis.

Fundamentalmente, é preciso Enfrentar as barreiras do preconceito. Assumindo que a literatura fantástica seja divulgada (ver princípio acima), uma das coisas que pode impedir a leitura é o preconceito de ver o nome de um autor nacional na capa. Ajude as pessoas a formar conceitos, deixando de lado quaisquer ideias preestabelecidas.

E, por fim, é preciso Nobilitar a literatura fantástica brasileira. Nobilitar significa tanto enobrecer como celebrar, e devemos tanto fazer dessa arte algo nobre (e, portanto, respeitada) como também devemos comemorar as vitórias que conseguimos no dia a dia. Cada leitor novo que reconhece o valor das narrativas fantásticas, cada livro publicado, cada manuscrito pronto… Tudo isso representa um grandioso avanço para todos nós.

Sonhemos. E realizemos. Só assim conseguiremos uma realidade fantástica onde nossas histórias terão excelso valor.
>> LETRA IMPRESSA – por Marcelo Paschoalin


FICÇÃO CIENTÍFICA E ANTROPOFAGIA

domingo | 1 | janeiro | 2012
Revista "Amazing Stories" (setembro 1960) - ilustração de Albert Nuetzell

Revista "Amazing Stories" (setembro 1960) - ilustração de Albert Nuetzell

Existe uma discussão permanente, nos círculos brasileiros de ficção científica, sobre a necessidade (ou a mera possibilidade) de um FC que funcione, entre nós, como o movimento modernista de 1922 funcionou em relação à poesia, a pintura, etc.
A discussão vem sendo travada nestes termos pelo menos desde 1988, quando Ivan Carlos Regina publicou o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”. A esta altura, todo mundo entende qual era mais ou menos a proposta dos “antropófagos” de 1922, tal como a colocou Oswald de Andrade: devorar a cultura européia como os índios caetés devoraram o Bispo Sardinha. Usá-la não como modelo, mas como combustível, para pôr em movimento uma cultura repleta de elementos nossos.
O manifesto de ICR critica os autores brasileiros que preferem imitar o modelo norte-americano de FC, repetir os mesmos temas, os mesmos clichês, a mesma linguagem – porque, vamos e venhamos, é muito mais fácil fazer “fanfic” do que literatura. (A “fanfic”, a ficção produzida por fãs, é quando os leitores de Harry Potter, Star Trek, etc. escrevem suas próprias histórias utilizando esses personagens e contextos. Não tem propósito criativo estrutural; apenas o prazer de produzir variantes das obras originais.)

Diz o manifesto: “(…) Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas. / A ficção científica brasileira não existe. / A cópia do modelo estrangeiro cria crianças de olhos arregalados, velhinhos tarados por livros, escritores sem leitores, homens neuróticos, literaturas escapistas, absurdos livros que se resumem a capas e pobreza mental, colônias intelectuais, que procuram, num grotesco imitar, recriar o modus vivendi dos países tecnologicamente desenvolvidos. / A ficção científica nacional não pode vir a reboque do resto do mundo. Ou atingimos sua qualidade ou desaparecemos. (…)”.

Este é o lado crítico do manifesto, e acho que permanece tão atual quanto em 1988. Deglutir, devorar, antropofagizar, implica sempre em destruir, “quebrar” aquele material em seus elementos constitutivos, usá-lo como eventual banco de dados para produzir uma literatura que não venha do impulso de imitar, mas de dizer verdades pessoais. Literatura é a verdade pessoal de cada um, e para essa verdade emergir precisa desligar esse piloto-automático que gera a fanfic e a imitação.
>> MUNDO FANTASMO – por Braulio Tavares


O MITO DO ALIENÍGENA MAL INTENCIONADO

domingo | 1 | janeiro | 2012

Por que Stephen Hawking está errado sobre o perigo da inteligência de extraterrestres?

Com o Arranjo de Telescópios Allen mantido pelo Instituto de Busca por Inteligência Extraterrestre (Seti, na sigla em inglês), no norte da Califórnia, chegará a hora em que encontraremos uma inteligência artificial (Eti). O contato provavelmente chegará mais cedo que se espera por causa da lei de Moore ─ proposta pelo cofundador da Intel, Gordon E. Moore, que propõe a duplicação da capacidade dos computadores a cada um ou dois anos. Acontece que essa curva de crescimento exponencial se aplica à maioria das tecnologias, incluindo a busca por Etis: de acordo como o astrônomo e fundador do Seti, Frank Drake, nossas pesquisas hoje são 100 trilhões de vezes mais poderosas que há 50 anos, sem previsão para o fim dessas melhorias. Se houver um ET lá fora, faremos contato. O que acontecerá quando o fizermos? Como será a resposta deles?

Questões como essas, mesmo no âmbito da ficção científica, estão sendo seriamente consideradas pelo mais antigo e um dos mais prestigiados periódicos científicos do mundo ─ Philosophical Transactions of the Royal Society A ─ que dedica 17 artigos da edição de fevereiro à “Detecção de Vida Extraterrestre e suas Consequências para a Ciência e Sociedade”. Por exemplo, várias respostas apregoam o mito de que a sociedade colapsará pelo medo ou se despedaçará pelo balburdia provocada ─ ou que os cientistas e políticos se unirão numa conspiração para ocultar a verdade. Dois desses exemplos foram testemunhados: um em dezembro de 2010, quando a Nasa anunciou, numa palestra aberta à imprensa, uma possível nova forma de vida baseada no arsênico, e outro em 1966, quando cientistas publicaram que uma rocha marciana continha evidências fósseis de vida primitiva no Planeta Vermelho e o presidente Bill Clinton se pronunciou a respeito. Agências espaciais que disputam acirradamente os recursos disponíveis como a Nasa e organizações privadas que dependem do levantamento de fundos como o Instituto Seti divulgarão em alto e bom som qualquer sinal extraterrestre que encontrarem, de micro-organismos a marcianos. Mas podemos voltar aos alienígenas?

De acordo com Stephen Hawking, devemos nos calar. “Só precisamos olhar para nós mesmos para ver como a vida inteligente pode se desenvolver e resultar em alguma coisa que não gostaríamos de encontrar”, ele explicou na série de documentários do Discovery Chanel em 2010. “Eu os imaginava viajando em naves robustas, depois de terem esgotado todos os recursos naturais de seus planetas de origem. Alienígenas tão avançados talvez pudessem ter se tornado nômades, tentando conquistar e colonizar qualquer planeta que encontrassem”. Considerando a história de confrontos entre civilizações terrestres nas quais os mais avançados escravizavam ou destruíam os menos desenvolvidos, Hawking conclui: “Se alienígenas nos visitarem um dia, eu acredito que o resultado seria muito parecido com o que aconteceu quando Cristovão Colombo pisou em terras da América, o que não foi muito agradável para os nativos americanos”.

Sou cético. Embora só possamos fazer uma tentativa em n elementos e apesar de nossa espécie ter um registro não invejável dos primeiros contatos entre civilizações, a tendência dos dados para a metade do milênio passado é encorajadora: o colonialismo está morto, a escravidão está morrendo, a porcentagem de pessoas que perece em guerras diminuiu, o crime e a violência estão em queda, liberdades civis são sendo preservadas e como testemunhamos no Egito e em outros países árabes, o desejo de ter democracias representativas está se espalhando, juntamente com a educação, ciência e tecnologia. Essas tendências tornaram nossa civilização mais inclusiva e menos exploradora. Se extrapolarmos essa tendência dos últimos 500 anos para os próximos cinco mil ou 500 mil anos, teremos uma noção de qual seria a aparência de um Eti.

Na verdade, qualquer civilização capaz de empreender longas viagens espaciais terá avançado muito além do colonialismo explorador e de fontes de energia não sustentáveis. Escravizar nativos e apoderar-se de seus recursos pode ser lucrativo a curto prazo para as civilizações terrestres, mas essa estratégia poderá não persistir nas dezenas de milhares de anos necessários para as viagens espaciais interestelares.

Nesse contexto podemos entender que as civilizações extraterrestres nos pressionam a considerar a natureza e o progresso da civilização terrestre e nos dão a esperança de que quando fizermos contato, pelo menos uma inteligência terá conseguido atingir um nível no qual a incorporação de novas tecnologias substituiu o controle das pessoas e a exploração do espaço superou a conquista de terras. Ad astra!

>> SCIENTIFIC AMERICAN – por Michael Shermer


CRESCE NÚMERO DE ESCRITORES BRASILEIROS QUE TRABALHAM O MEDO EM SEUS LIVROS

domingo | 1 | janeiro | 2012

 (Arquivo Pessoal)

O escritor André Vianco é um dos autores de Literatura Fantástica mais vendidos do Brasil

O medo é o objetivo. E o limite entre o terror e a tranquilidade faz a diferença na hora de atrair leitores jovens. A literatura de terror produzida por autores contemporâneos brasileiros não tem contornos definidos e muito menos a pretensão de criar qualquer tradição de gênero, mas cresce, revela nomes e envereda por caminhos ainda muito ancorados nas referências de língua inglesa. O terror brasileiro herdou as criaturas e fantasmas geradas no Hemisfério Norte. Em alguns casos, incorporou pimenta própria com cores locais. Há seres saídos das lendas brasileiras diretamente para a tramas protagonizadas por vampiros e almas penadas. Ou então cenários favoráveis com especificidades urbanas que atendem os requisitos para se equiparar às metrópoles melancólicas típicas de certas histórias. Mas tradição, não há.

Na análise do paulistano André Vianco, 36 anos, o cenário mudou muito desde o ano 2000. “Há 10 anos, as editoras eram bastante reticentes quanto a receber fantasia e terror por parte dos autores nacionais, mas eu sabia que tinha esse público, gente que queria ler uma literatura de terror que não fosse infantil e escrita por brasileiros.” Vampiros foram os primeiros parceiros do escritor na empreitada que rendeu mais de 13 livros, a maioria publicada pela Novo Século. No mais recente, O caso Laura, lançado pela Rocco, as criaturas ficaram de fora e o terror se voltou para um suspense mais humano.

Vianco também gosta de inserir, nas narrativas, algumas referências brasileiras, como o Curupira e outras criaturas lendárias. Alimentado pelo cinema, ele prefere se concentrar no conteúdo e deixar a forma de lado. “Cresci assistindo muita coisa na tevê, lendo quadrinhos, jogando videogame e os autores contemporâneos vão se apropriando disso tudo. É claro que há aqueles que gostam mais da literatura clássica de terror. No meu caso, dou mais valor à história e não a como ela vai ser apresentada. A gente vive disputando atenção do leitor com playstation, internet, seriado na tevê e isso também traduz nossa linguagem.”

O leitor jovem é maioria nas apresentações e eventos dos quais Vianco participa, mas ele garante também conversar com vovós, mães e pais que acompanham a prole na leitura. É o mesmo público visado por Douglas MCT e Ademir Pascale, nomes do topo da lista de livros de terror da Draco, editora especializada em fantasia e ficção científica. Roteirista de games, Douglas publicou o primeiro romance no ano passado. Necrópolis — A fronteira das almas traz a saga da alma perdida de um garotinho que precisa ser resgatada pelo irmão mais velho. É o primeiro de uma série de três e o segundo está previsto para 2012. Nascido no interior de São Paulo, Douglas, 28 anos, confessa ter explorado temores pessoais para escrever a história.

Fã de Stephen King e Guillermo del Toro, ele levou para o livro a mescla de bizarro, horror épico e terror psicológico comum nas narrativas desses autores. “O público são jovens pós-Restart e adultos, ainda que adolescentes mais novos tenham se interessado também, como apontam as estatísticas da rede social livreira Skoob. Mas gosto de dizer que o público é aquele que busca um frescor em tramas de fantasia e terror. Daqueles que gostam de sentir medo por meio de uma mídia”, garante. Ademir Pascale, autor de O desejo de Lilith, acrescenta à fórmula algumas mensagens de superação. Para o paulistano de 35 anos, o medo contido na trama de terror só é justificável se conduzir a uma espécie de “lição”.

Fórmula do medo

 “Numa história de Terror
não pode faltar a imersão: levar
quem lê para a profundeza, na
qual ele possa sentir na pele
a possibilidade daquilo, temer
junto do personagem e morrer
junto dele, se possível”, 


Douglas MCT, autor de Necrópolis —
A fronteira das almas 


“Tem que ter aproximação com o leitor, colocar o leitor juntinho com as personagens que estão encenando a história e essa proximidade vai dar toda a atmosfera. Por mais fantasiosa que seja a premissa do romance, (o autor tem que) fazer o leitor acreditar naquilo “, 

André Vianco,
autor de O caso Laura 

“Gosto do terror abstrato.
É o terror que tá dentro da pessoa.
É uma pessoa que acorda de
noite com síndrome do
pânico e começa a ver coisas onde não
existe, esse é o terror realmente bom,
que me dá medo”, 


Heloísa Seixas, autora de O pente de Vênus — Histórias do amor assombrado

>> CORREIO BRAZILIENSE – por Nahima Maciel


MERCADO EDITORIAL: O INCERTO CAMINHO DOS NOVOS ESCRITORES ATÉ A PUBLICAÇÃO

domingo | 1 | janeiro | 2012

Em enquete com 60 escritores,
levantamos os dilemas enfrentados
por autores em busca de editoras

 [Papo Cabeça] Mercado Editorial   O incerto caminho dos novos escritores até a publicação

Anos atrás, o editor Paulo Roberto Pires presenciou uma inflamada discussão acerca do excesso de autores estreantes que as grandes editoras andariam colocando no mercado. Ele sabia que, a qualquer momento, um dos críticos poderia apontá-lo entre os culpados pelo que seria “falta de parcimônia” editorial. Como jornalista cultural, depois um dos organizadores da primeira Flip (2003) e, por fim, editor em duas das maiores casas publicadoras do País, a Planeta e a Ediouro, ele apresentou a um público mais abrangente alguns dos principais nomes da Geração 00, como João Paulo Cuenca, Joca Reiners Terron e Santiago Nazarian.

Pires não considera isso negativo. “Se um escritor é bom ou ruim, o tempo é quem diz. Era preciso sacudir o mercado naquele momento em que era enorme a diferença entre o que se editava e o que se via de interessante na internet.” O fato é que atitudes como a dele ajudaram a estimular a aceitação a novos autores. “A internet alterou o perfil do lançamento de um estreante”, avalia Vivian Wyler, gerente editorial da Rocco. “Está mais fácil ser autor agora do que quando quem badalava sua obra era visto com desconfiança, como se não tivesse a pátina correta de eruditismo. Hoje, ninguém vai criticar quem quer estar onde os leitores estão. As feiras literárias estão aí para provar.”

A exposição só não alterou o fato de que a publicação por uma grande editora marca, em geral, o momento em que tudo muda na trajetória de quem quer viver de literatura – ou se tornar uma pessoa jurídica, como diz Cristovão Tezza, que pôde parar de dar aulas e viver apenas em razão de seus livros desde que O Filho Eterno, publicado pela Record, abocanhou quase todos os prêmios literários de 2008. “É importante a recepção que o livro tem quando vem de uma grande. As pessoas olham diferente para um livro da Companhia das Letras, por exemplo”, diz Antonio Prata, que ingressou nesse olimpo literário em 2003, com As Pernas da Tia Coralina, publicado pela Objetiva.

O Sabático resolveu saber dos próprios autores qual o impacto de uma grande editora em sua carreira, como foi o caminho até ela e como se sentem a respeito numa época em que, cada vez mais, surgem boas casas de pequeno ou médio porte no País – como a 34, a Iluminuras e a Ateliê Editorial, só para ficar em três exemplos. Numa espécie de pesquisa informal, enviamos pequenos questionários a quase 70 escritores de todas as idades, dos quais 60 aceitaram participar. As questões foram feitas em cima do primeiro título lançado com distribuição nacional e grande alcance de divulgação. E que, na maior parte dos casos, não foi o primeiro que tiveram editado – Lya Luft, por exemplo, escreveu o primeiro livro 13 anos antes de chegar à Record, onde virou best-seller com As Parceiras, em 1980; Ana Miranda escreveu dois de poesias por editoras pequenas e ficou 10 anos retrabalhando o mesmo romance até enviar os originais de Boca do Inferno para a Companhia das Letras – foram mais de 200 mil exemplares desde 1989.

É claro, o caminho é bem mais rápido para quem não se dedica a outros trabalhos antes, como Lya, ou não se debruça tanto tempo sobre a mesma obra, como Ana. As duas, que estrearam em grande editora com 40 e 37 anos, respectivamente, estão acima da média de idade que os participantes da enquete tinham quando chegaram lá, 34 anos. Quase um quarto dos escritores (23%) conseguiu fechar um contrato no mesmo ano em que terminou de escrever o primeiro livro – apostas em iniciantes, como no caso dos autores editados por Paulo Pires, ajudam a engrossar esse número; prêmios literários e publicações anteriores de contos em periódicos e antologias também.

Mas um número parecido (20%) esperou mais de uma década desde as primeiras tentativas literárias até receber um convite de uma grande editora. Caso de gente como Affonso Romano de Sant’Anna (que esperou 22 anos até, aos 38, ter Poesia sobre Poesia publicado pela Imago), Cristovão Tezza (17 anos tendo obras recusadas até Traposair pela Brasiliense) e Marcelo Mirisola (15 anos escrevendo livros até ser convidado pela Record a lançar Joana a Contragosto).

Mas Mirisola, assim como Marcelino Freire e outros escritores, já era conhecido quando teve o romance editado pela maior editora do País. O reconhecimento chegou com Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia, que a Estação Editorial, uma editora de médio porte, publicou em 1998. “No meu caso, não mudou nada”, diz o paulistano sobre o título que saiu pela Record. Tanto que, depois disso, voltou para uma editora média, a 34, e em breve terá um infantil (a quatro mãos com Furio Lonza) pela Barcarolla.

Indicações

Só quatro dos 60 autores (Mirisola, Ana Miranda, João Almino e Tiago Melo Andrade) disseram que recomendações feitas por outros escritores ou pessoas próximas não facilitam o caminho para um iniciante. Tirando um ou outro que preferiu não emitir opinião a respeito, a grande maioria respondeu ao Sabático que a indicação abre portas, sim – mas todos ressalvaram que apenas permite aos manuscritos uma mãozinha para chegar logo ao topo da pilha de originais. Vinte e um dos autores disseram que escreveram a convite – está certo que boa parte deles já era algo conhecida por textos em antologias, periódicos ou editoras pequenas. Outros 38 afirmaram que enviaram originais; desses, 24 conheciam o editor ou tiveram a tal recomendação, e os 14 restantes afirmaram só ter oferecido os originais nas editoras. E uma única, dentre os 60, recorreu a um agente – Ana Maria Machado, publicada pela Francisco Alves, uma das grandes em 1983. “Nos EUA, é mais comum iniciantes contratarem agentes. Por aqui é raro o autor se arriscar a pagar um agente sem a certeza da publicação; isso só costuma acontecer quando eles já estão com carreira mais estabelecida”, diz a editora Izabel Aleixo.

Por curiosidade, metade dos 38 autores que foram bem-sucedidos após enviar originais preferiram fazê-lo para uma só editora – uma espécie de ética que as casas publicadoras não exigem e que pode acabar sendo um problema para quem aspira ser editado. Luciana Villas Boas, diretora editorial da Record, por exemplo, diz que não vê mais originais em papel não solicitados. “Não há como. Se vem um e-mail, a gente até se situa. Se achar que a carta está bem feita e que existe um mínimo de potencial, vai para leitura. Recebo uns 25 emails por mês, sem falar nos que recebem todos os outros editores, e uma quantidade absurda de papel que não serve para nada.”

Vivian Wyler, gerente editorial da Rocco, diz que passam de 150 os originais que chegam por mês à editora. A Rocco não veta os que chegam em papel, mas exige que todos venham gravados em CD – se o autor quiser mandar a impressão em anexo, fica por conta dele. “E, vou te dizer uma coisa, 98% dos livros. logo nas primeiras páginas, senão na carta de apresentação, você vê que não é um livro de verdade. Não falo nem de regras gramaticais, e sim de um mínimo de estilo, de consciência literária”, diz Izabel Aleixo, ex-diretora editorial da Nova Fronteira, que acaba de assumir cargo na Paz e Terra. Isso faz com que bons livros se percam na montanha de aspirações literárias. E é aí que entra a recomendação. Não porque vá privilegiar alguém, mas porque permite a triagem.

Mas nem todos são adeptos da fidelidade. Elvira Vigna, ao terminar O Assassinato de Bebê Martê, abriu um catálogo do Snel (sindicato dos editores) e mandou uma cópia do romance a cada editora cujos nome reconheceu. Em menos de um mês, recebeu a resposta de uma das melhores do País, a Companhia das Letras. Nelson de Oliveira também mandou seus contos de estreia para cerca de 20 editoras, mas precisou esperar oito anos, ganhar um prêmio, o Casa de Las Americas, e ser recomendado por um dos jurados, Rubem Fonseca, para publicarpela mesma casa Naquela Época Tínhamos um Gato>. Hoje, voltou a publicar por pequenas editoras: “Não há mais muita diferença. Em geral, as pequenas se profissionalizaram.” Ignácio de Loyola Brandão, que mandou cópias de seu Depois do Sol para 13 editoras, recebeu cartas padrões de quase todas e uma que não esqueceu, da Civilização Brasileira: “O autor escreve como quem mija.” “Achei até que era elogio, mijar é um ato natural”, conta. Acabou sendo publicado logo pela Brasiliense – e o editor Caio Graco, lembra Ignácio, aceitou a obra sem nem fazer reparos de edição.

novosautores2 [Papo Cabeça] Mercado Editorial   O incerto caminho dos novos escritores até a publicação

Autores falam sobre o primeiro livro

“Já na Ateliê (de médio porte), com o Angu de Sangue, em 2000, minha vida literária mudou. Fui bastante resenhado, divulgado. Não sou desses que ficam com a bunda na cadeira, reclamando de editor”
Marcelino Freire

“As pessoas olham diferente para um livro da Companhia das Letras, por exemplo. Se fica mais fácil? Creio que sim. Mas não acho que no Brasil publicar seja problema. Isso é fácil. Difícil é vender”
Antonio Prata

“Aprendi que as pessoas não querem palpite nem sugestões, querem endosso e apadrinhamento. Qualquer restrição ou dica, por mínima que seja, é vista como ofensa e se ganha um desafeto”
Ana Maria Machado

“A passagem da Revan (de pequeno porte) para a Nova Fronteira não significou nada. Meu desempenho de público até piorou. Tanto que a Nova Fronteira não quis um segundo livro meu”
Alberto Mussa

“Aquele era o meu livro, era o livro possível, e se o editor fosse mais invasivo a obra não seria tão autêntica. Prefiro caminhar com as minhas próprias pernas e aprender com os meus próprios erros”
Adriana Lisboa

“A gente também passa a fazer outros trabalhos: textos de prosa e ficção para jornais, orelhas de livros, palestras. Para isso, é imprescindível ser publicado por uma grande editora, é evidente”
Cintia Moscovich

“Editoras grandes ajudam sobretudo em distribuição e divulgação, mas é precipitado dizer que necessariamente trazem mais público. Nada impede que isso seja alcançado em publicação independente”
Daniel Galera

“Quem leu (o primeiro livro que escrevi) achou péssimo e tive de concordar antes de enviar a qualquer editora. Mas todo livro é o primeiro. Já tive livros recusados depois de publicar o primeiro”
Bernardo Carvalho

“(A indicação) facilita o acesso à editora, mas não garante a publicação. É lenda achar que, por conhecer o autor ou ser amigo de alguém de seu círculo, o editor vai publicar o livro”
Cristovão Tezza

>> PAPO CABEÇA – por PDL


“FÁBULAS DO TEMPO E DA ETERNIDADE”, DE CRISTINA LASAITIS

domingo | 1 | janeiro | 2012

Lançado em 2008 e já em sua segunda edição, “Fábulas do Tempo e da Eternidade” (Tarja Editorial, 206 páginas), livro de estreia da paulistana Cristina Lasaitis, é uma coletânea de contos que transitam majoritariamente entre ficção científica e fantasia, tendo como tema principal a passagem do Tempo. Com abordagens sempre particulares e estabelecendo entre si algumas interessantes conexões, os doze textos que compõem o livro destacam-se pela qualidade da escrita e pelas tramas multifacetadas, abraçando o fantástico sem nunca se descuidar do aspecto humano, com todos os sentimentos e contradições que o envolvem.
O primeiro conto, “Além do Invisível”, apresenta-nos um cenário futurístico em que a realidade virtual tornou-se a realidade, onde acompanhamos o romance de Marcos e Maya. A autora é competente em contrastar a magnitude dos cenários irreais com a decadência do mundo onde os usuários se conectam, e retrata o amor entre os dois de maneira bastante sensível, apesar das circunstâncias surreais em que a relação se situa (ou quem sabe exatamente por causa delas). A conclusão do conto é singela e enigmática, tornando-o uma boa amostra do que se seguiria nos próximos textos.

Em “As Asas do Inca”, conhecemos um poderoso imperador do império pré-colombiano obcecado pelo desejo de observar o futuro. Para isso, recorre à magia. O conto tem um tom claramente fabuloso – que a pequena introdução já antecipa – e, apesar do desfecho algo previsível, naturalmente balizado por uma lição de moral (não seria uma fábula caso não houvesse uma), consegue convencer, remetendo à natural curiosidade humana e colocando-a lado a lado com o desejo pelo poder, uma combinação que fatalmente trás consequências.

“Nascido das Profundezas” narra um encontro entre culturas num Atacama pós-apocalíptico. De um lado, os neo-atlantes, desenvolvidos em saberes e tecnologia, de outro, grupos nativos que literalmente pararam no tempo após um período de guerras e peste. A reação é de estranhamento por parte dos primeiros, e festa por parte dos segundos. A autora explora bem o cenário criado, e os desdobramentos do pano de fundo – a história por trás da história, que aqui surge adequadamente em volta de uma fogueira, contada por um velho, envolta num tom lendário – soam verossímeis dentro daquelas circunstâncias obviamente fantásticas. Um ótimo texto.

Em seguida vem “Revés Alquímico”, provavelmente o conto que menos me agradou. Nele, uma farmacêutica começa a trabalhar com um excêntrico professor amante da alquimia, e os dois metem-se com o segredo do famoso Elixir da Longa Vida. O principal problema do texto são os personagens, um tanto desinteressantes, e o tom cômico de muitas das situações, que a meu ver atrapalha por impedir um envolvimento maior com a trama. Por outro lado, os efeitos do elixir são um pouco diferentes do que seria de se supor, e a autora merece pontos pela boa sacada. Ainda assim, penso que um desenvolvimento um pouco mais sério contribuiria para um todo mais satisfatório.

A ficção científica volta em “Assassinando o Tempo”. Uma cientista brasileira está às vésperas de colocar em prática uma experiência que pode vir a provar uma teoria sem precedentes na história da Ciência: a não existência do Tempo. Dispensando a atenção necessária ao aspecto científico da trama sem soar maçante ou prolixa, a autora também acerta ao investir algum tempo no desenvolvimento da protagonista, Cláudia Mansilha. Bem trabalhado ainda na construção do suspense em torno do experimento e na especulação de possíveis desdobramentos do mesmo (nesse sentido, a oposição de grupos religiosos soa mais do que verossímil), o conto destaca-se como um dos melhores do livro.

Segue-se “A Outra Metade”, e o nível continua alto. Uma sibila* caminha pelas ruas de uma metrópole, sozinha, fadada a nunca encontrar sua alma gêmea, de quem fora separada na Criação. Porém, oferecendo um sacrifício à Solidão, a mulher tem a chance de olhar para o futuro e capturar um breve vislumbre daquela que lhe completaria de acordo com a ordem do universo – seu amor, sua outra metade. Lasaitis trata o tema com uma singeleza desconcertante num conto que merece destaque pela beleza das palavras. A solidão da sibila surge de maneira aterradora, amparada pela prosa ágil e quase lírica da autora, permeando cada linha e culminando num clímax poderoso – o encontro -, uma intensa explosão de sentimentos habilmente narrada e bem urdida. De longe, meu texto favorito.

Em “Viagem Além do Absoluto”, os dois últimos seres viventes vagam por um universo em ruínas, com a entropia alcançando seu limite. Em certo sentido, dada a temática do livro, esse conto representa seu ápice, o momento em que o Tempo e tudo mais deixarão de existir. A perspectiva do Fim por si só já desperta interesse e fascinação, e a autora é competente ao explorá-la, coroando o texto com passagens que revelam sentimentos de maneira sutil e humana.

“De Onde Viemos, Para Onde Vamos” tem como grande barato a inusitada identidade de seu narrador, uma escolha criativa e divertida que dá algo mais ao breve conto – trata-se do menor do livro. Destaque também para o ótimo final.

“Irmãos Siameses” vem em seguida. O título é autoexplicativo: os protagonistas são dois irmãos que nascem ligados pelo pescoço. O cenário é o mesmo deserto visto em “Nascido das Profundezas” (os dois contos dialogam abertamente, em dado momento). A trama foca basicamente no crescimento dos irmãos, e, em certo momento, numa dura escolha que terão de fazer. O conto naufragaria caso os personagens principais não fossem bem construídos, e, felizmente, isso não ocorre. O leitor se envolve com a narrativa na mesma medida em que se importa com os irmãos, em outra boa demonstração do bom gosto da autora na criação de personagens.

“Caçadores de Anjos” abraça novamente a fantasia, narrando a jornada de uma caçadora especializada em transformar anjos caídos em humanos. Funciona bem, com um clímax bastante intenso, mas, por outro lado, pareceu-me um tanto deslocado em meio aos outros contos do livro quanto a sua relação com a temática central. De todo modo, um bom texto.

“Os Parênteses da Eternidade” consiste numa troca de correspondências entre duas pessoas distantes alguns séculos uma da outra, através do Correio do Não-Tempo. Este conta apresenta alguns interessantes desdobramentos dos acontecimentos vistos em “Assassinando o Tempo”, além explorar alguns dos paradoxos e riscos da comunicação entre épocas diferentes. Bom como a maioria.

Fechando as Fábulas, apropriadamente, “Meia-noite”. Passado no mesmo universo de “Além do Invisível”, que abre os trabalhos, e compartilhando com este primeiro alguns personagens, a história de Syl, funcionária de uma poderosa corporação atacada por uma Inteligência Artificial dá um ótimo fechamento ao livro, remetendo diretamente ao cyberpunk das tecnologias integradas de maneira quase orgânica à vida cotidiana e dos grandes conglomerados mandando no mundo. Com um término vibrante – o último parágrafo fica na cabeça depois que se fecha o livro – o conto estabelece-se facilmente como um dos melhores da seleção e mostra definitiva do talento da autora.

“Fábulas do Tempo e da Eternidade” é uma forte recomendação. Boas leituras.
>> DEPÓSITO DE DESATINOS – por Josué de Oliveira