Biblioteca de Babel: “O Olho de Apolo”, de G. K. Chesterton

A influência de Gilbert Keith Chesterton em Jorge Luis Borges é evidente. Podemos encontrá-la na sua escrita, na estrutura lúdica e algo artificiosa das suas narrativas e, especialmente, na obsessão do escritor argentino pelo tema do duplo. Inúmeros são os contos em que esta temática é explorada. Neles sente-se a presença de Stevenson, sem dúvida, talvez um pouco a de Poe, mas é a figura de Chesterton que nos vem mais à memória quando lemos sobre labirintos e espelhos. Por isso nada mais natural que o aparecimento de um número dedicado a este escritor na colecção de literatura fantástica A Biblioteca de Babel”, dirigida por Borges e editada por Franco Maria Ricci.

É esta colecção que a Editorial Presença tem vindo a publicar, mantendo as capas originais, e da qual já saíram sete números. Sendo o último, com o título de O Olho de Apolo, precisamente aquele que homenageia Chesterton.

O livro é composto por cincos contos: “O Olho de Apolo”; “A Honra de Israel Gow”; “O Duelo do Dr. Hirsch”; “Os Pés Estranhos” e “Os Três Cavaleiros do Apocalipse”. Os quatro primeiros têm como protagonista o célebre detective Padre Brown, quase um alter-ego do escritor. Todos se estruturam em redor da resolução de um enigma.

Antes dos contos temos uma pequena introdução do próprio Borges onde está patente o fascínio que sente por Chesterton. Diz ele: “Podemos antever uma época em que o género policial, invenção de Poe, tenha desaparecido, sendo de todos os géneros literários o mais artificial e aquele que mais se assemelha a um jogo. O próprio Chesterton escreveu que o romance é um jogo de rostos e a narração policial um jogo de máscaras… Não obstante esta observação e a possível decadência do género, estou certo de que os contos de G. K. Chesterton serão sempre lidos, uma vez que o mistério sugerido por um feito impossível e sobrenatural é tão interessante quanto a solução de ordem lógica que nos revelam as últimas linhas.” Esta frase resume a peculiaridade das histórias policiais de Chesterton. Antes de a razão vir iluminar os acontecimentos, o mundo, por momentos, parece mergulhado no absurdo, na irracionalidade e no fantástico. Uma atmosfera, umas vezes onírica, outras ominosa, perpassa toda a narrativa. Imagens de assombro invadem a nossa imaginação durante a leitura, e lá permanecem muito depois de esta ter terminado.

Essa persistência é uma das facetas do génio de Chesterton. A sua escrita é altamente poética e visual, mesmo pictural (Chesterton chegou a trabalhar como ilustrador nos inícios da carreira). Ninguém que leu Chesterton esquece os seus fulgurantes pores-do-sol, cheios de laranjas, violetas, azuis; nem os seus luares cintilantes.

O livro abre com o conto “O Olho de Apolo” (“The Eye of Apollo”). É um conto estranho, de certa maneira um paradoxo. Tudo de se passa num moderno prédio londrino, onde trabalham duas irmãs dactilógrafas, um detective privado e um adorador do Sol. Chesterton consegue aqui um cocktail bizarro que mistura elementos pagãos – o deus Apolo, sacerdotes, esoterismo – com símbolos da modernidade – máquinas de escrever, elevadores. No meio desta amálgama de sinais contrários ocorre um crime de uma simplicidade assustadora, quase monstruosa. É um conto muitíssimo inteligente. Um dos melhores de Chesterton.

De Londres passamos para as florestas misteriosas e agourentas da Escócia. É lá que se passa a acção de “A Honra de Israel Gow” (“The Honour of Israel Gow”). Num castelo misterioso, durante uma noite tempestuosa, o Padre Brown e os seus amigos reúnem-se para desvendar um enigma que envolve o desaparecimento inexplicável de um homem e o aparecimento, ainda mais inexplicável, de vários objectos bizarros. Notável é a criação de toda uma atmosfera feérica que envolve e sufoca as personagens – e o leitor. Um mal irracional e primevo parece emanar das árvores da floresta e o uivo do vento desperta memórias de espíritos malignos. No final, a luz vence as trevas e o mistério é desvendado, mas não sem antes a imaginação do Padre Brown lhe ter pregado alguns sustos.

O conto seguinte, “O Duelo do Dr. Hirsch”, passa-se em França. A narrativa gira à volta de um documento roubado, mas isso é só um pretexto para Chesterton explorar um dos seus temas favoritos, o tema do duplo. É engenhoso mas não tem o mesmo poder evocativo dos outros contos.

Em “Os Pés Estranhos” regressamos a Londres e a mais um conto clássico Chestertoniano. O Padre Brown encontra-se num hotel – um hotel muito especial e muito britânico na sua excentricidade – a tratar da sua vida quando esbarra inesperadamente num crime, ou talvez seja melhor dizer que é o crime que esbarra no Padre Brown. Este conto é extraordinário por ser ao mesmo tempo simples, original e complexo.

Por último temos aquele que Borges designa na introdução como o melhor conto de Chesterton. A história que contém o mistério é narrada por um tal de Mr Pond a um grupo de amigos. A acção passa-se numa zona desolada da Polónia e tem como protagonistas três cavaleiros hussardos. O que é realmente impressionante neste conto é a qualidade dantesca da paisagem que serve de cenário à narrativa. Estamos perante um tipo de paisagem que Dante não desdenharia em incluir num dos círculos do inferno. Vastas planícies pejadas de pântanos e brejos surgem perante o leitor. Só um estreito caminho, ladeado de encostas, quebra a imensidão plana. É por este caminho que os cavaleiros, meros pontos na paisagem, se movimentam. É no contraste entre a dimensão humana – pequena e volátil – e a dimensão da natureza – grande e eterna – que reside o brilhantismo deste conto.

É tão raro haver edições de Chesterton em português que é de saudar cada nova que aparece. No entanto é necessário apontar um aspecto negativo nesta edição que afecta a fluidez de leitura. É o facto de não haver nenhuma pista gráfica a indicar a separação dos parágrafos. Esta opção torna certas passagens do texto confusas sem necessidade. É incompreensível e mais uma prova da importância que o design gráfico tem na fruição de um livro. Um aspecto muitas vezes negligenciado pelas editoras portuguesas.

Uma palavra final para a tradução. Chesterton não é um autor fácil de traduzir devido à qualidade poética da sua escrita mas o tradutor conseguiu sair-se bem e fez um trabalho competente, apesar de, para uma pessoa habituada a ler Chesterton no original, ter ficado a sensação de faltar qualquer coisa.

Os contos foram publicados originalmente nas seguintes colectâneas: The Innocence of Father Brown (1911): “O olho de Apolo”, “A Honra de Israel Gow” e “Os Pés Estranhos”; The Wisdow of Father Brown (1914): “O Duelo do Doutor Hirsch”; The Paradoxes of Mr Pond (1937): “Os Três Cavaleiros do Apocalipse”.
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