A CIÊNCIA NA LITERATURA

Escritores antecipam há muito em sua produção revelações científicas

A exemplo do que o poeta e crítico norte-americano Ezra Pound preconizou, que os artistas estão em tal sintonia com a profundidade do mundo que são capazes de “prever o porvir”, o escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1908) é uma dessas antenas da raça. Daniel Martins de Barros e Geraldo Busatto Filho publicaram na revista médica British Journal of Psychiatry que o conto machadiano O anjo Rafael antecipou em dezoito anos a descrição de um distúrbio psíquico, a “folie à deux” (loucura a dois). Anunciada pelos psiquiatras franceses Jean Pierre Falret e Ernest-Charles Lasègue em 1887, a psicopatologia leva parentes (ou gente muito próxima) de pessoas com sintomas psicóticos a sofrerem, por convivência, “contágio” do mesmo problema mental. Desiludido e endividado, doutor Antero quer se matar no início de O anjo Rafael, conto publicado originalmente em 1869 no Jornal das famílias. Bilhete de despedida pronto, tem a arma à mão quando batem à porta. O major Tomás lhe mandara um recado. Levado até ele, descobre tratar-se de um amigo de seu falecido pai, a quem prometera dar a Antero a mão de sua rica e reclusa herdeira, Celestina. A proposta o reanima, mas logo o protagonista percebe que seu anfitrião sofre da “monomania celestial” de acreditar ser o anjo Rafael. Para complicar, descobre que a própria Celestina acredita ser filha de anjo. Reviravoltas depois, o casamento se realiza e Celestina se muda de casa. Só depois disso, ela retoma a sanidade. – O sintoma básico é a transmissão de uma crença delirante para uma pessoa saudável (que, por isso, se torna delirante):  isso aparece nos

diálogos em que Celestina defende a ideia de o pai ser um anjo; o quadro é reversível, o que também Machado antecipou, já que  ela se cura com o afastamento do pai – diz Daniel M. Barros, que atua no Núcleo de Psiquiatria Forense, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, da USP. Ficção não científica
O caso de Machado não é isolado. Escritores das mais diferentes estirpes, gêneros e nacionalidades rivalizam com seus colegas de ficção científica e fazem antecipações dignas de Júlio Verne (1828-1905). Não se trata de predições futuristas, como as de Verne, ou a idealização de cenários imaginários, como os de Arthur C. Clarke ou Aldous Huxley. Mas de criações que falam de conflitos concretos de personagens mundanos, imaginados por autores sem intenção deliberada de fazer sci fi.
Relatos realistas, fantasiosos ou alegóricos podem trazer surpresas aos cientistas de hoje. Ou o que dizer da primeira descrição de epilepsia do lobo temporal feita pelo romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Em O idiota, de 1869, o escritor (ele mesmo vítima da doença) descreve com detalhes o estágio marcado pelo êxtase que antecede a crise epilética. Só em 1898, o inglês Hughlings Jackson associa ataques automáticos e amnésia com distúrbios na região temporal do cérebro huma­no. Atribui-se a uma passagem de As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift (1667-1745), a primeira descrição do mal de Alzheimer. Numa das ilhas que o protagonista visita há seres que não morrem. O que inicialmente o viajante toma por bênção revela-se maldição: as pessoas seguem envelhecendo, perdendo funções, reduzindo a vitalidade, sem ter o alívio final da morte. A doença degenerativa seria descrita apenas em 1906, pelo psiquiatra alemão Alois Alzheimer. – A descrição do envelhecimento feita pelo livro é característica de um quadro demencial. A narrativa do início do processo, particularmente no que se refere às capacidades cognitivas, assemelha-se bastante à demência que anos mais tarde vitimaria o próprio Swift – conta Daniel Barros. Luas de Marte
Fruto da imaginação vertiginosa de um autor satírico, As viagens de Gulliver seria ainda responsável por outra previsão, desta vez astronômica: a da existência de duas luas em Marte. Décadas depois, o filósofo francês Voltaire (1694-1778) faria a mesma descrição, em seu Micrômegas (1752). Mas só em agosto de 1877 o astrônomo norte-americano Asaph Hall (1829-1907) revelaria ao mundo a descoberta de Deimos e Fobos, luas marcianas com nomes gregos que significam “terror” e “medo”. Hoje, uma cratera ao sul de Fobos recebeu o nome do astrônomo, enquanto dois platôs de Deimos levaram os nomes dos literatos que primeiro imaginaram as luas. – Os escritores conseguem olhar o mundo e refleti-lo nas suas obras, e muitas vezes nesse processo, sem saber, transcrevem para o livro elementos que os olhos técnicos ainda não haviam captado – avalia Daniel Barros. Síndromes
Charles Dickens (1812-1870) faz um dos personagens de As aventuras do sr. Pickwick ser marcado por sonolência diurna e obesidade. Na história, o comilão Joe Gorducho integra o grupo de quatro rapazes liderados pelo protagonista Samuel Pickwick, que se mete numa aventura por Londres em busca de revelações científicas e humanas. Sua descrição é a definição integral do quadro clínico da apneia noturna (deixar de respirar durante o sono) por obesidade, associada à sonolência diurna, que só no início do século 20 viria a ganhar o nome de “síndrome de obesidade-hipoventilação alveolar”. Para os íntimos, “síndrome de Pickwick”. O paralelo da doença com o romance de Dickens foi feito pela primeira vez por sir William Osler, em The principles and practice of medicine (1905). Mas só em 1956 a equipe de C. S. Burwell cacifou a descrição de Dickens como precisa o suficiente para reunir num só rótulo todos os sintomas da doença: não só os episódios de apneia durante o sono – o rubor facial de Joe Gorducho, por exemplo, “bate” com a politecmia provocada pela diminuição de oxigênio. Burwell foi quem popularizou o termo “pickwickiano” na medicina. O nome mais conhecido de outra doença, também chamada de “síndrome de Todd”, rende tributo a Alice no país das maravilhas. A desordem neurológica afeta a percepção e é caracterizada por despersonalização e alucinações associadas ao estado de enxaqueca, a tumores cerebrais ou uso de alucinógenos. A “síndrome de Alice”, como é nomeada, é uma doença rara que lembra as experiências relatadas por Lewis Carroll (1832-1898). O psiquiatra inglês John Todd, que batizou a síndrome em 1955, defendeu a homenagem ao autor de sua infância usando como evidência passagens dos livros Alice no país das maravilhas (1865) e Alice através dos espelhos (1872). Há quem acredite que Carroll tinha familiaridade com o problema, que, na sua época, ainda não estava descrito pela medicina. Neurociência
Desde que Freud encontrou no Édipo rei, de Sófocles, um dos antecedentes da teoria psicanalítica, os estudiosos das relações entre a mente e o mundo parecem cada vez mais convencidos de que somos feitos de ciência e imaginação literária. Em Proust foi um neurocientista (editora Best Seller, 2010), o norte-americano Jonah Lehrer mostra verdades sobre a mente humana reveladas pelas artes que só agora a ciência está, como ele afirma, (re)descobrindo. Foi assim que Walt Whitman (1819-1892) cravou que o corpo e a alma são inseparáveis – portanto, açoitar o corpo dos escravos negros, por exemplo, era castigar também sua alma, pois não temos um corpo, somos um corpo. O corpo e a alma estão fundidos, são nomes distintos da mesma coisa. Nossos sentimentos são corporais, nossos desejos são sábios, a experiência é confiável – pois o ser é um todo impossível de ser reduzido em duas partes. “Vem, disse minha alma, Tais versos para meu Corpo vamos escrever, (pois somos um só).” Esse é o modo como Whitman é visto por Lehrer, um editor da revista Wired e do blog de neurociência da Scientific American, que já trabalhou em laboratórios de neurocientistas. Seu argumento é que a neurociência moderna só agora aponta a anatomia subjacente a primores literários, como a poesia de Whitman. Mostra que pesquisas como as de António Damásio sustentam a mesmíssima ideia de que nosso cérebro gera nossos sentimentos metafísicos a partir do corpo físico. “A moral dos versos de Whitman era que o corpo não era simplesmente um corpo”, escreve Lehrer. “Quando os materialistas de sua época anunciaram que o corpo nada era além de uma máquina desenvolvida – não havia alma alguma dentro – o poeta reagiu com ceticismo característico.” Jogo da memória
Assim como Whitman antecipou Damásio nas relações entre mente e corpo, Marcel Proust (1871-1922) anteviu questões científicas sobre a memória, defende Lehrer. A memória não é um reservatório, constatou o escritor de Em busca do tempo perdido, obra publicada entre 1913 e 1927, em sete volumes. A mordida num biscoito madeleine e o mero aroma do chá catapulta o autor à infância, mas à infância degustada (afetada) por aquele chá. As lembranças se tornam mais e mais suspeitas à medida que o tempo avança. Assim que terminamos uma ação começamos a distorcer a memória para encaixá-la em nossa narrativa pessoal. Buscar o tempo perdido é impossível, pois não há armazém de recordações intactas. Um conjunto de experiências realizadas com ratos, em 2000, na Universidade de Nova York, por Karim Nades, Glenn Shafe e Joseph LeDoux confirmaram a ideia proustiana de que o ato de lembrar também altera a pessoa. As experiências de laboratório evidenciaram que a memória é um processo contínuo, que nunca para de alterar as recordações, tal qual o protagonista do romance proustiano. Escritores antecipam há muito em sua produção revelações científicas Simbiose
Lehrer mostra que certos autores não admitem como realidade o que a ciência objetiva – e tendem a preencher, por meio da imaginação, as possibilidades não realizadas. Mas é impossível, na mesma medida, compreender a arte deles sem levar em consideração suas relações com a ciência. As pesquisas neurocientíficas da primeira década do século 21 sobre o “eu” e a “consciência” estavam já contidas na obra de Virgínia Wolf (1882-1941) e as conclusões da linguística de Noam Chomsky nos anos 1950 tiveram antecedente literário em Gertrude Stein (1874-1946), na primeira década do século 20. Se Lehrer estiver certo, há uma simbiose entre arte e ciência. A literatura evidencia que a ciência não é a maneira exclusiva de acesso e representação da experiência. A ciência confirma suspeitas e certezas imaginárias. Talvez a atividade humana mais pura tenha sempre algo de outro campo. Ao explorar a própria experiência, diz Lerher, os escritores expressam o que nenhum experimento capta e mantêm em suas linhas as revelações que tendem a guiar os diferentes rumos da ciência. >> REVISTA QUANTA – da Redação

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