ANTROPOFAGIA NA FICÇÃO CIENTÍFICA

Brasil tem tudo para avançar no gênero ficção científica
e reprocessar as convenções literárias que assimilou

Obras estrangeiras, como o filme 2012, exploram o potencial do gênero ficção científica que Brasil hesita em assimilar

Em 1988, o escritor Ivan Carlos Regina publicou no fanzine paulistano Somnium o Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, cujo texto pode ser lido aqui: <http://bit.ly/eStPSp&gt;. Não era a primeira nem a última vez que alguém cobrava dos escritores brasileiros de ficção científica (FC) uma literatura, que, mesmo usando temas e imagens de literaturas estrangeiras (o que é natural, e talvez inevitável), refletisse sobre o Brasil, ao menos tanto quanto o faz a nossa literatura mainstream, a literatura mimética, realista, de enfoque social ou psicológico.

Se há cobrança para que a FC discuta conteúdos brasileiros é porque ela não é mero gênero literário. Faz parte de um movimento cultural mais amplo. Em países como os EUA e a Inglaterra (que são seu eixo, sua matriz histórica), o gênero é um discurso literário que se interliga com a discussão científica, a ambiental, os movimentos políticos que questionam os usos de novas tecnologias. A ficção científica tem, nesses países, interfaces com os movimentos sociais alternativos, por um lado, e com as elites militares e aeroespaciais, por outro. Serve como caixa de ressonância e balão de ensaio para ideias, teorias e especulações de todo um espectro de grupos que vai da direita à esquerda, dos altos escalões do poder científico às subculturas e contraculturas marginais, com ramificações no rock, no cinema experimental, nos quadrinhos. Isto faz da ficção científica umambiente cultural, algo mais heterogêneo, amplo e contraditório do que um gênero literário; e exige dela uma série de compromissos e de respostas que ninguém exigiria da literatura mainstream em geral.

FC nacional
O crítico Peter Nicholls, criador e editor da Encyclopedia of Science Fiction, afirma: “A FC muitas vezes oscila entre o sublime e o ridículo, mas no cômputo geral ela encara de frente verdades que são incômodas, e também algumas que são agradáveis, com uma honestidade muito mais devastadora do que a ficção mimética seria capaz.”

A FC, segundo Isaac Asimov, tem como tema as mudanças produzidas por descobertas científicas ou pela criação de novas tecnologias. Uma das suas alegorias visuais famosas é o osso que se transforma em espaçonave em 2001, uma Odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick. O primeiro instrumento, improvisado ao acaso por um humanoide, gerou toda uma babilônia de tecnologia e poder. Note-se que, na mesma sequência do filme, a caneta do cientista escapa de seu bolso e baila no ar, ao som de Danúbio azul. A caneta (a linguagem, a escrita, a ciência teórica, a literatura) faz parte dessa linha evolutiva de instrumentos.

Síntese
Não se pode determinar por decreto que um escritor, de ficção científica ou não, tem de escrever sobre seu país. Quando a crítica manifesta esperança de que a FC brasileira (ou a poesia ou o cinema brasileiros, etc.) diga algo sobre o Brasil, a expectativa se dirige a um conjunto de obras amplo e poderoso o bastante para influir no modo como o país pensa a seu próprio respeito. Temos essa expectativa, não por patriotismo ou xenofobia, mas porque a literatura brasileira (qualquer uma) é redigida, publicada e lida por brasileiros. O Brasil cedo ou tarde emerge nessa ficção, com a força sísmica de todo “retorno do reprimido”.

Qualquer escritor quer fazer suas próprias escolhas de ambientação e temática. Não quer ser aconselhado a ambientar suas histórias em outros países “porque é moderno”, ou em seu próprio país “porque é patriótico”. Uma obra literária é uma síntese problemática entre as convenções literárias a que se filia (sempre existem), o ambiente cultural e extraliterário de onde surge, e as idiossincrasias do autor. Quando um autor brasileiro de FC parece refletir o Brasil de forma insuficiente em seus livros, talvez seja porque seu ambiente e suas idiossincrasias o inclinam a reproduzir, sem reprocessar, as convenções literárias que assimilou.

Em Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidade no país do futuro (Devir, São Paulo, 2005), M. Elizabeth Ginway observa que há um sentimento, entre os autores brasileiros, de que a modernização, especialmente sob a forma de importação de tecnologia, é uma repetição da experiência colonial. Essa atitude cautelosa em relação a uma modernidade vinda de fora nos parece natural, mesmo que a desconfiança inicial possa ser logo substituída por um frenesi importador. Esse tipo de reação se reproduz em nossa atitude diante da própria FC, que é um instrumento narrativo fascinante, mas às vezes parece ter sido criado e formatado para contar histórias diferentes das nossas.

Talvez, contudo, a FC seja como o rádio portátil que o caipira ganhou de presente na Itália e não quis trazer para o Brasil porque o rádio só falava italiano. Trazido para cá, o rádio da FC começa a captar transmissões que estavam sendo feitas há séculos, mas de cuja existência ninguém suspeitava, por não haver instrumento que as captasse.

A FC brasileira tem mostrado que pode “antropofagizar” os temas e as estruturas narrativas da FC estrangeira. Kim Stanley Robinson afirmou que talvez a ciência mais importante dentro da ficção científica não fosse a Física nem a Astronomia, mas a História. Se a FC é de fato um exame literário, imaginativo, das consequências possíveis das mudanças científicas, todo o seu corpus literário é um conjunto de Histórias possíveis da raça humana.

A obra de FC do carioca Gerson Lodi-Ribeiro, por exemplo, tem sido uma reflexão constante sobre as virtualidades da História, explorando o subgênero clássico da História Alternativa. O que teria acontecido se o Brasil tivesse perdido a Guerra do Paraguai? E se o Quilombo dos Palmares tivesse se transformado num reino negro independente? E se os holandeses nunca tivessem sido expulsos do Brasil? As ramificações sociais dessas reviravoltas na política são o pano de fundo para histórias fantásticas em Brasis que somos forçados a comparar com o nosso. O escritor e designer Octávio Aragão, por sua vez, criou o ciclo de histórias da Intempol, universo compartilhado por vários escritores, que conta as aventuras da Polícia do Tempo, cujos agentes (seguindo o modelo da Time Patrol de Jack Williamson e outras FCs internacionais) viajam para o passado e o futuro para prevenir crimes e transgressões.

As histórias de FC de Roberto de Sousa Causo, abordando aventuras militares na Amazônia, têm similares estrangeiros, mas a inserção no ambiente físico e social brasileiro as projeta num outro nível de significação e extrai delas outros critérios de plausibilidade. Até a FC hard de Jorge Luiz Calife, ambientadas num futuro remoto e nos confins da Galáxia, mantêm o vínculo com o Brasil e suas contradições; funcionam como um gigantesco espelho distorcido em que podemos reencontrar, com outros traços, muito do nosso presente.

Correntes
Um erro de quem tem pouca familiaridade com a FC é imaginá-la como um conjunto articulado de escritores com opiniões parecidas, como tantas vezes ocorre nas escolas literárias. A FC é um rótulo que abriga autores de todo tipo: de direita e esquerda, vanguardistas e tradicionalistas, conservadores e anárquicos, pacifistas e militaristas, apocalípticos e integrados.

Muitas (nem todas) dessas correntes têm similares na FC brasileira. O movimento cyberpunk, por exemplo, criado nos anos 1980 nos EUA, produziu no Brasil ecos distantes mas notáveis, num conjunto de autores que Roberto de Sousa Causo chamou de “tupinipunks”, e que inclui desde os delírios de Fausto Fawcett sobre uma Copacabana noir e tecnológica até as “piritas siderais” de Guilherme Kujawski, micronarrativas com experimentalismo de linguagem.

Discurso contemporâneo
A narrativa urbana tem ampliado seu espaço nas últimas décadas, mas um dos subgêneros mais sólidos da FC brasileira são as histórias sobre o que podemos chamar de Espaço Selvagem, que supõem a existência, em algum ponto do Brasil, de uma região habitada por um povo com conhecimentos (científicos, esotéricos, etc.) que em algum aspecto são superiores aos nossos. Essas histórias envolvem com frequência descendentes dos incas ou dos atlantes. Entre dezenas de títulos há A Amazônia misteriosa (1925) de Gastão Cruls, A Filha do Inca (1930) eKalum (1936) de Menotti Del Picchia, A cidade perdida (1948) e A serpente de bronze (1949) de Jeronymo Monteiro, vindo até títulos mais recentes como Os deuses subterrâneos (1994) de Cristovam Buarque.

Um clichê a respeito da FC diz ser ela “a literatura que conta histórias do futuro”, mas isto diz pouco. A FC fala de todos os tempos possíveis, por mais improváveis. Seu assunto é a mudança, seu formato é a História: histórias futuras, secretas, alternativas, paralelas, paradoxos históricos e temporais. Uma importante coleção francesa de FC se intitula Présence du futur, e a FC é de certa forma a presença constante e irrecusável de incontáveis futuros.

Outro clichê é o que se refere ao Brasil como “o país do futuro”, o que tanto pode ser interpretado como “o país com mais possibilidades” quanto “o que vive adiando suas realizações”. Talvez não seja excesso de otimismo imaginar um futuro em que o Brasil e a FC se iluminem mutuamente.
>> REVISTA METAFORA – por Braulio Tavares

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