FICÇÃO DE POLPA – VOLUME 2

ficcao-polpa2aO segundo volume da Ficção de Polpa (que, segundo Samir Machado de Machado, continuará a ser publicada anualmente – o volume 3 já foi fechado) é voltado mais para a ficção científica, como deixa claro a epígrafe de Ray Bradbury, autor de As Crônicas Marcianas: “Qualquer coisa que você sonhe é ficção, e qualquer coisa que você alcance é ciência. Toda a história da Humanidade não é nada além de ficção científica.”

Este volume tem 175 páginas, 1,5 vezes maior que o anterior (125 p). Mantém o mesmo formato e projeto gráfico do anterior (Gisele Oliveira fez a ilustração de capa e Samir o design). São vinte contos brasileiros mais um presente na faixa-bônus: Uma Odisséia Marciana, de Stanley Weinbaum, um clássico da geração “Before the Golden Age”, anterior aos mestres Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, e fonte de inspiração para eles. Uma excelente escolha (a do número 1 também foi ótima, mas, ao contrário de Lovecraft, Weinbaum é muito pouco conhecido no Brasil, e o inusitado é sempre bom).

O primeiro conto, Vácuo, de Frederico Cabral, é a transcrição do relato oral de um explorador em uma missão fora da Terra. É uma narrativa interessante, que lembra contos de Ray Bradbury, com um pouco de humor que faz a diferença. É bom o bastante para abrir a coletânea e deixar o leitor com gosto de quero mais.

Visitas, de Samir Machado de Machado, é um conto curto que mantém o ritmo e segura a peteca, por assim dizer. É uma história aparentemente simples, mas correta: você já sabe como vai terminar quase desde o começo, mas quer ler até o fim assim mesmo só para ter certeza, e essa é a garantia de uma boa história, que prende a atenção do leitor.

A Coruja Empalhada, de Guilherme Smee, sai da FC e entra no território da fantasia e do horror. Tem um tom semelhante ao do conto de Samir, mas, se por um lado tem uma vantagem (não é tão fácil descobrir o final com antecedência), por outro tem uma desvantagem (os diálogos, principalmente os do dono da loja, são um pouco empolados, manifestando aí o lado ruim do clichê).

Sala de Espera, de Rodrigo Rosp, é uma flash fiction na linha New Weird, onde o estranhamento chklovsiano está presente em cada linha. É um ótimo conto cujo único defeito (se é que isso é um defeito) é ser curto demais. Mas aí é tarde: o leitor já foi capturado e quer mais.

E tem mais: Olhos Vazios, de Luciana Thomé, é outro conto borderline, ou talvez slipstream, que mistura gêneros e transcende fronteiras. E isso é o mais interessante nessa coletânea: o desejo de não pertencer a um único gênero literário. O conto de Luciana segue a tradição de Angela Carter e Shirley Jackson (e, mais recentemente, de Kelly Link): lida com medos bem concretos para oferecer uma solução sobrenatural ao fim (ou não).

Emet, de Rafael Bán Jacobsen, é uma releitura da história da criação do Golem pelo Rabino Loew. É um dos melhores contos da coletânea, e também um dos mais extensos, o que neste caso é uma vantagem, pois esta é uma história que dificilmente funcionaria se fosse muito curta. E, como está, funciona perfeitamente.

Morte Anunciada, de Rafael Spinelli, é um conto interessante e atraente, ainda que irregular: se por um lado conta uma história instigante, por outro faz uso de uma linguagem barroca, adjetivada demais, que não ajuda a leitura. Assim como o conto de Guilherme Smee, a narrativa de Rafael Spinelli dá a entender que o uso dessa linguagem é proposital, talvez justamente para dar ao leitor uma sensação de algo fora do normal, ou quem sabe porque uma linguagem rebuscada seria mais adequada. Não é. Teria funcionado muito melhor se a linguagem fosse mais “simplificada” (notem as aspas – escrever simples não é fácil).

Leonardo Siviotti conjura, em A Ilha de Tobias, um cenário que é uma mistura de Lost com A invenção de Morel, de Bioy Casares. O final é correto, e nos lembra alguns filmes de sucesso (porque bons), mas falar mais estragaria a surpresa para o leitor.

Nós, Robôs, de Bernardo Moraes, é uma flash fiction também correta, mas não acrescenta nada ao corpus literário de histórias do gênero. É uma leitura recomendada para iniciantes no gênero de FC.

Uma grande diferença entre os volumes 1 e 2 é a presença de autores não-gaúchos. O premiado escritor paulistano Carlos Orsi é um deles. Cura-te a Ti Mesmo está entre os melhores contos desta coletânea. Nele, Orsi segue numa linha semelhante ao seu conto já clássico O Planeta dos Mortos, ao enveredar por uma linha aparentemente esotérica e transformá-la em ciência – o que é, aliás, uma das características da boa ficção científica.

CPL593H, de João P. Kowacs Castro, repete o que talvez seja o clichê mais utilizado por escritores brasileiros que se aventuram pela nobre senda da ficção científica: a amante-robô. Apesar de um desenvolvimento competente e um bom final, é de difícil leitura para quem tem mais experiência nesse gênero (ainda que não seja exclusivamente questão de deformação profissional – o clichê está gasto mesmo, e mesmo a competência na descrição e na narrativa não o salva necessariamente).

O Palanque, de Pena Cabreira, é um conto de horror que pertence à categoria do “e se fosse verdade”, porque não é sobrenatural. A narrativa peca um pouco pelo excesso de adjetivação, mas a construção do suspense se faz num ritmo adequado – como o de um simples palanque de madeira.

Antônio Xerxenesky faz de seu conto On/Off uma provocação para o leitor, ao contar uma história FC-farmacológica que lembra Cortázar em Cefaléia, com direito a alterações de percepção baseadas provavelmente em Philip K. Dick. É um conto a não se esquecer, e um dos melhores da coletânea.

Sofisma Sentimental Interplanetário, de Rafael Kasper, não é ficção científica – pelo menos não no sentido tradicional do termo. Embora utilize corretamente tropes do gênero, Rafael se permite uma saudável brincadeira com ele, escrevendo na verdade uma história sobre o cotidiano, mas pintada com outras cores e com uma boa dose de humor.

Luz Sobre Cinza, de Kelvin K., parece seguir na mesma linha do conto anterior – mas apenas parece. É a narrativa mais incômoda do livro, e isso é bom. Kelvin saboreia as palavras, a ponto de elas serem mais importantes que o que está sendo contado, que ao fim e ao cabo não tem tanta importância, e isso não é nem um pouco ruim, pelo contrário.

Yves Robert, português filho de belgas, é o outro “alienígena” da coletânea. Seu Traz Outro Amigo Também é uma história policial-surreal que surpreende pelo inusitado, e cujo ritmo bem sincopado e humor fino e sutil só fazem com que esta história seja muito saborosa.

A Oficina, de Annie Piagetti Müller, é um estudo sobre o medo. Lembra um pouco o conto Os Anjos das Marquises, de Rubem Fonseca, embora mais histérico (no sentido freudiano-lacaniano do termo, é preciso que se diga) e menos realista, mas nem por isso menos eficiente.

Juarez Guedes Cruz nos oferece, em Braços Longos Para os Adeuses uma história de robôs que tem um ótimo título, mas que também peca, assim como as demais histórias robóticas da coletânea, pelo desconhecimento do que se tem feito de mais relevante nesse subgênero nas últimas três décadas. É um conto bonito, porém ingênuo e não funciona a contento. Ler autores contemporâneos como John Scalzi beneficiaria muito a Juarez e a todos os autores brasileiros atuais que desejem escrever histórias envolvendo robôs, andróides e congêneres.

Ressaca, de Silvio Pilau, é talvez o conto mais engraçado do volume. Misture álcool com abdução e a mistura pode ser explosiva. A lamentar, apenas o tamanho do conto (pequeno demais) e o excesso de explicações, que tiram o frescor da primeira metade da narrativa.

Em O Último Fogo do Mundo, Marcelo Juchem fecha com chave de ouro (ou seria de plutônio?) a coletânea com uma flash fiction que lembra Fredric Brown, um mestre do subgênero, com um quê de Stephen Baxter. A descrição lembra também o filme Fonte da Vida, de Darren Aronofsky. Que este conto evoque tantas referências é um mérito, que só faz bem ao autor e à coletânea.

O volume 2 da Ficção de Polpa já evidencia um grande amadurecimento com relação ao primeiro. 2008 foi um ano em que a equipe da Não Editora fez novos contatos, publicos mais e melhores livros, ganhou um prêmio importante e encerra os trabalhos da temporada como a melhor editora brasileira a publicar ficção científica de autores brasileiros.
>> PÓS-ESTRANHO – por Fábio Fernandes

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